Sinais Vitais

A Droga do Paraíso

11 julho 2007 12:32

11 julho 2007 12:32

 

 



Barcos-casa do Lago Dal

 

Em Caxemira há uma cidade e, nessa cidade, há um lago. Já foi paraíso terreno de imperadores. Os anos passaram e o paraíso lá continua. Os fins é que se alteraram. O lago Dal, em Srinagar, é uma cidade flutuante. Famílias inteiras bóiam nas águas criando canais e dispondo os seus barcos como casas numa aldeia. Todos juntos nem parecem muitos mas, contados um a um, são mais de dois mil. Dois mil barcos que todos os dias vazam as sua fisiologia na água que consumirão ao jantar.

 



Ibrahim a nadar em frente ao barco-casa da família

 

Ibrahim tira a roupa e mergulha. Passa toda a manhã na infectada água do lago, nadando de casa em casa, rindo do ruidoso despejar da sanita. Tem idade para andar na escola. Estas são horas de estar na escola mas infelizmente o Ibrahim chapinha neste pântano de diferença como se fosse a sua única tarefa de vida. Ismik, o pai, acha perfeitamente normal a actividade do filho. Para Ismik tudo é normal. Vive mergulhado na distância tangível do haxixe. Tem olhos de quem já morreu para uma de muitas realidades. De qualquer das formas, Ibrahim não precisa de ir à escola. O seu futuro em pouco diferirá do da família. Uns gramas a mais ou a menos de haxixe por mês sempre darão para viver no paraíso.

 

O irmão mais novo de Ismik chama-se Hanif. O maior orgulho lúcido da sua vida foi ter seduzido uma turista francesa, casado com ela, arranjado uma autorização de residência em França e produzido descendência mestiça. Quando chegou o dia em que a legalidade lhe pediu um emprego útil arruinou-se numa depressão. Tratamento: o paraíso. Teve que regressar a Caxemira por incompreensão francesa. O dia de Hanif flutua entre os espasmos verborreicos e a letargia de uma minhoca. A esposa local pede-lhe que socorra a pequena Fátima de sete meses que se volatiliza numa diarreia infecciosa. Em má hora veio. Os braços de Hanif tremem e são incapazes de coordenar uma pagaia que os empurre até à margem. Quem aguentou até ali também há-de aguentar mais umas horas, cospe de uma assentada. A irresponsabilidade é purgada pelo fumo ensurdecedor do haxixe.

 



Comércio flutuante do lago

 

Se fosse apenas uma casa, um lar, tudo isto corresponderia a uma distribuição normal mas quando se anda de barco em barco e o cenário é sempre idêntico conclui-se que esta é a moda e, por mais artifícios estatísticos em que queiramos acreditar, acabamos por calcular a média do paraíso.

 



Lótus no Lago Dal

 

A margem do lago pouco difere. Todos perguntam se quero algo "especial", onde "especial" toma vários preços consoante as percentagens relativas da mistura de haxixe e bosta de vaca. É um emprego como os outros. Nem a polícia nem o exército levantam o sobrolho. Um emprego que faz a sua pausa para a sesta e retoma com a brisa fresca do fim da tarde.

Fátima passa a noite no hospital. Quando a mãe a traz de volta, Hanif atravessa uma crise de verborreia e anuncia a quem quiser ouvir o quanto ama aquela filha e o que por ela é capaz de fazer. Só parece olvidar os vazios de realidade em que os problemas surgem e ele é, para todos os efeitos, um ser inútil, incapaz de apresentar uma solução. Um saco de cebolas no paraíso.

------------------------------------------------------------------------------------

O Espectáculo da Fronteira

Todas as tardes, ao pôr-do-sol, em Attari, na Índia, e em Wagah, no Paquistão, se fecha uma fronteira que se tornou um espectáculo em si mesmo e que atrai diariamente milhares de pessoas.

Até ao início da cerimónia, as multidões são entretidas com música nacional e atiçadas com gritos patrióticos mencionando sempre a sua superioridade em relação ao vizinho. Crianças correm com a bandeira do seu país em direcção aos portões que separam os dois estados.

Chegado momento solene, todos se comportam à altura respeitando os actores deste teatro. Os guardas saem um a um da formatura para acorrer aos portões. A cerimónia é executada simetricamente de ambos os lados da fronteira. Só os gritos são dessincronizados para que se possam ouvir à vez.

Descem-se as bandeiras lentamente e ao mesmo tempo para que nenhuma fique mais alta que a outra. Os guardas dobram a bandeira num instante e levam-na em braços até à sala de armas onde descansará durante a noite.

Finda a cerimónia, é altura para as fotografias e autógrafos. Todos vão até aos portões fechados para o retrato.

É um espectáculo conhecido em ambos os países, incluído nos destinos de férias, orquestrado e encenado pelas duas guardas da fronteira, com muito folclore, mas que continua a atrair milhares de espectadores pela festa popular em que se tornou.

 

Luís Mieiro,

médico