Roupa para lavar

Algumas recordações da minha primeira rua

25 abril 2007 8:04

25 abril 2007 8:04

       Moi, em farda de gala, no dia em que fiz oito anos

A minha rua não era exactamente uma rua, mas antes uma avenida, a Rodrigues de Freitas, assim chamada em homenagem ao primeiro deputado republicano eleito no nosso país – pelo círculo do Porto, que no século XIX era a guarda avançada do país progressista e moderno.

Se não contarmos com os dias em que habitei no Largo da Maternidade Júlio Dinis, atravessei a infância e parte essencial da adolescência no 304 da avenida Rodrigues de Freitas, em frente à Garagem Galiza e à Casa de Espanha.

Estávamos na Primavera de 1972 e eu ainda não tinha feito 16 anos quando uma estranha ocorrência obrigou toda a minha família a abandonamos a nossa casa a meio da noite, refugiando-se no apartamento da Pasteleira dos meus tios Abílio e Maria Luísa. Os trabalhos de demolição no prédio que fazia paredes-meias com o nosso não deveriam estar a ser dirigidas com grande competência, pelo que ele desabou com estrondo por volta das três da manhã.

Como sempre tive o sono pesado, não ouvi nada e acordei com bombeiros a entrarem pelo meu quarto a gritar que o prédio tinha de ser evacuado imediatamente, pois ameaçava desmoronar-se. Ou seja, tinha de sair e depressa. Tomei logo ali duas decisões importantes: salvar uma caixa de chocolates (à época, era guloso) e deixar lá ficar o dicionário de Latim, ganhando assim um boa desculpa para não fazer o exercício de Latim, agendado para esse dia de manhã. Reconheço que a desculpa tinha o seu quê de inverosímil.

A professora de Latim chamou-me mentiroso, descompôs-me à frente da turma, dizendo que as minhas desculpas estavam cada vez mais estrambólicas - e obrigou-me a fazer o ponto, partilhando um dicionário com um colega. No dia seguinte, depois de ter visto uma fotografia do prédio ao alto da primeira página do JN, pediu-me desculpa mas também me deu um pequeno sermão, baseado na história de Pedro e do lobo.

Encerrando o assunto, devo dizer que o 304 da avenida Rodrigues de Freitas aguentou firme e que, 35 anos volvidos sobre a noite em causa, ainda está lá no seu sítio. Nós é que - pelo sim pelo não - não voltamos. A emigração da minha família para o zona Ocidental tornou-se definitiva.

Sempre gostei moderadamente da avenida Rodrigues de Freitas. Não tem a elegância aristocrática da Marechal Gomes da Costa, nem transpira a riqueza da Marechal Saldanha, mas é uma avenida que se pode apresentar como endereço sem passar por nenhuma vergonha.

É certo que o facto de desaguar num cemitério - baptizado com o adequadíssimo nome de Prado do Repouso - não a enobrece, mas em Nova Iorque a Wall Street dá para uma igreja com cemitério e não lhe caíram os parentes na lama por causa disso.

A vizinhança com a sede da Pide-DGS era claramente uma desvantagem, mas para sermos precisos, a tenebrosa instalação  - de onde fugiu, a meio de uma noite chuvosa de Inverno, o líder da Luar, Palma Inácio – ficava na rua do Heroísmo e não na avenida Rodrigues de Freitas.

O Jardim de S. Lázaro, com o seu coreto, ali mesmo ao lado da minha casa, era um local agradável, onde eu gostaria de ter aprendido a andar de bicicleta, o que teria acontecido se não fosse a teimosia da minha mãe, que se recusou a comprar-me uma. Sempre que eu lhe falava no assunto, ela vinha-me com a história do meu pai que numa infeliz brincadeira com bicicletas tinha espetado, com profundidade, uma lança das grades do jardim numa perna.

Em frente ao jardim, ficava o Colégio Nossa Senhora da Esperança, que no meu imaginário era frequentado apenas por raparigas muito giras. Já me esqueci da cor das batas delas, mas ainda hoje lamento nunca ter namorado com nenhuma miúda do Esperança.

Um pouco mais adiante está a Biblioteca Municipal, onde passei memoráveis dias. Na altura, as férias grandes eram mesmo grandes e – com excepção, do mês da Agosto em que a minha família tinha uma barraca alugada na praia do Molhe -  eu passava os dias a devorar as aventuras do Ene 3, major Alvega, Garra de Aço, Texas Jack, Cisco Kid e do Agente Secreto X9, em volumes encadernados a couro do Falcão, Condor e Mundo de Aventuras.

Do outro lado da rua, fica o Café S. Lázaro, um dos santuários dos estudantes de Belas Artes, onde frequentei, com o Rui Reininho, o Joel e a Tina, a mesa do Jorge Lima Barreto, que tinha já então um livro sobre jazz publicado.

A minha vida não se esgotava nos passeios da avenida. O meu raio de acção regular estendia-se pelas vizinhas praças da Batalha e dos Poveiros, pelas ruas de Santa Catarina, Passos Manuel e 31 de Janeiro. E também pela Travessa do Poço das Patas, onde o meu pai era visita assídua do café Bico Doce.

Em Passos Manuel, havia dois clássicos. O café Clássico, onde ao sábado à noite tomei muitas "vitaminas" (chocolate quente em chávena de café) com o meu amigo e vizinho João Couto, discutindo sobre as canções que ouvíamos no Em Órbitra ou no Página Um, enquanto fazíamos horas para tentar sintonizar a Rádio Argel, com o hino nacional a abrir e a voz grossa de Manuel Alegre a anunciar:  "Esta é a voz da liberdade!". E a Casa das Tortas, onde aos domingos eu e o meu pai, Alfredo, comíamos uns magníficos pasteis de Chaves aquecidos, no intervalo entre os jogos dos juniores (de manhã, no campo de treinos das Antas) e o dos seniores.

A Praça dos Poveiros tinha como grande atracção a Confeitaria Costa Moreira, no entretanto desaparecida, famosa pelas fabulosas bolachas Moreirinhas.

O Batalha, que acolhia as sessões de fim de semana do Cine Clube do Porto, era, com sua espectacular fachada, desenhada por Artur Andrade, a placa giratória entre os dois espaços de uma praça – um, dominado pelo Teatro S.João, a messe de oficiais e a estátua de D. Pedro, o outro, onde pontificava a escadaria e os azulejos da fachada a Igreja de Santo Ildefonso, onde fiz a comunhão, ajudei (por uma vez só) à missa e joguei futebol.

A Batalha, essa praça esquisita, que nem o génio de Fernando Távora conseguiu endireitar por completo, era a porta de acesso às discotecas de 3 de Janeiro, onde ia ouvir os mais recentes EP e LP, ou às lojas de Santa Catarina, a movimentada rua que tem no Majestic o principal dos seus ícones – e onde ficava a Redacção do Norte Desportivo, o primeiro jornal onde escrevi. Mas isso já é outra história...