14 abril 2008 10:49
14 abril 2008 10:49

Devagar se deveria ir longe
Que arrogância a minha pensar que conseguiria pôr em palavras tudo o que passa diante dos meus olhos. Que arrogância pensar que conseguiria descrever as muralhas de pinheiros que repetidamente surgem, sem avisar, nas planícies argentinas. A languidez das vacas que invariavelmente se deixam ver de cabeça baixa. A infindável e rectilínea estrada que sobe e desce pelas colinas do deslumbrante nordeste argentino. As planícies que se deixam ver por dezenas se não centenas de quilómetros de verde, verde, verde.
"Às 8 horas estou na Argentina para começar à boleia!". Eles bem se riram mas convicção não me faltava.
Acordo às 9h30. Como sempre não consigo dormir pouco. O meu corpo não mo permite. Por favor, quando eu morrer não marquem o meu enterro para de manhã porque algo me diz que vão ficar à espera. Moral da história: começo às 14h, só com 6 horas de atraso. Começo a entrar no ritmo latino-americano.
Brasil-Argentina: Sem problemas mas com muita demora

Pouca segurança, muita intensidade
Atravesso a fronteira e saio fora da primeira cidade, Puerto Iguazu. Algum tempo de espera traz-me uma carrinha com um avô paraguaio, uma mãe argentina e uma tia brasileira. A filha, adoptiva, tenta um dialecto que agrade aos três.
Tudo corre bem até que a infeliz carrinha pára. Sobre-aqueceu. A primeira de várias vezes que nos leva a demorar 3 horas a percorrer 100 km. O dia não começou como esperava.
Deixam-me em Alcazar e depois de atravessar um "pueblo" onde muitos me olham intrigados, levanto determinado, de novo, o dedo. "Hasta 2 de Mayo? Sube". Uma carrinha com cinco semi-bêbedos no espaço para 3 pessoas e eu na caixa aberta sem protecção traseira. Entre canas de pesca e ferrugem faço uma viagem inesquecível pelas paisagens de Misiones.
A minha terceira boleia deixa-me numa estação de serviço em Leandro N. Alem, ponto de descanso de camioneiros. "Às 4 da manhã começam a sair." Às 6h00 por fim tenho sorte, quando um sonolento camionista me apanha na estrada. A companhia ajuda a combater o cansaço. Percebo como nós somos mutuamente úteis em viagens nocturnas. Sem dúvida algo a anotar para praticar no futuro.
Com ele sou iniciado no ritual do maté. Uma erva de que se faz chá, num copo peculiar, de mesmo nome, com água quente e açúcar à vontade do freguês. Encher de água, pôr a "palhinha" e dar a beber. Receber, encher de água e beber. Ora um, ora outro. Assim se bebe maté, em toda a Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.
A meio da tarde fico em Santo Tomé, numa estação de serviço no meio do nada, paisagem recorrente nesta imensa Argentina. Aí, após várias tentativas, vejo uma família e sinto: "Eles vão me levar." Pergunto. Entreolham-se. Espreitam os filhos. "Venga." Até Buenos Aires! "Mas a carrinha é lenta e faltam cerca de 700km até à capital."
Porquê viajar assim?

Um pequeno adulto de 9 anos
Muitas vezes me perguntei e ainda algumas me pergunto o porquê desta viagem. Hoje descobri o significado desta viagem. Digo dos 20 ou 30 mil km que vou fazer de estrada. Não é só para encontrar família. Não é só por correr chão. É porque sim. Porque quero conhecer. Conhecer mais e diferente. Quero ver, viver, experimentar.
Sigo na velha Ford deste casal que se ama e sorri, com um miúdo de 9 anos que pergunta "É assim que se comem bolachas em Portugal?" e uma menina de 6 que se agarra à minha mão quando adormece na traseira da carrinha. Metade da viagem fiz em conversa com os pais, a outra a brincar ou a dormir junto com os miúdos.
Cada tinha uma garrafa com berlindes. Disse-lhes que jogava também quando era mais novo. Respondi que não quando me perguntaram se tinha algum berlinde agora. Imediatamente me deram, cada um, um dos seus. Não quaisquer uns. Os maiores que tinham. Levo-os no bolso.

Até que os três caem por terra
Deitaram-se e dormiram. Sentei-me no colchão e olhei outra vez pela janela, com avidez de paisagem. Queria ver tudo. Ilusão estúpida. Nunca verei tudo. Olhei para baixo e continuei a ler Allende. Senti que tudo o que queria naquele momento era ler, sentado, a espreitar as crianças que dormiam, enquanto a planície argentina passava pela janela. Percebi que não tinha pressa de chegar. Que só queria isto mesmo: viajar.
Percebi nesse momento que encontrei a resposta à minha pergunta. O que é afinal a minha viagem? É esse momento. Não mais que a simples felicidade desse momento em que não tive pressa de chegar a lado nenhum nem vontade de fazer nada além do que estava a fazer. Em que não tive o mínimo sopro de inquietude, porque tudo o que queria estava ali.Com os olhos cansados fecho o livro. Ajeito os miúdos para arranjar um pouco de espaço e me deitar também.
Fecho os olhos. A Buenos Aires? Chego quando chegar.