A Tempo e a Desmodo

Manuel Forjaz, o cancro e a tal lição de vida

14 fevereiro 2014 8:00

14 fevereiro 2014 8:00

Em Outubro ou Novembro, participei como orador na academia política da Juventude Popular. Só falava no domingo, mas também apareci no sábado porque basicamente queria falar com o Ricardo Costa (outro orador convidado) sobre o novo diário online do Expresso. Bendita a hora em que resolvei aparecer. Além de ter colocado a conversa em dia com o Ricardo, ouvi a palestra de uma pessoa que desconhecia em absoluto (e continuo sem conhecer): Manuel Forjaz. E não irei esquecer tão cedo este orador. Apesar da palestra ser sobre empreendedorismo, Forjaz começou por dizer que tem cancro e, com dois ou três socos retóricos, deixou a audiência presa à alcatifa da sala de congressos do hotel. Nesta fase, temi o pior, oh não, um tipo com um discurso lamechas sobre a doença, um tipo que quer obrigar-nos a sentir pena por ele. Os meus instintos estavam errados.

Forjaz não falou do cancro para criar uma empatia melada com as pessoas. Ele não queria sentir a pena dos outros, ele não queria a palmadinha nas costas. Então por que razão falou do assunto? Julgo que queria mostrar que a dor pode ser uma lente notável sobre a vida e sobre o tal empreendedorismo; o cancro e a dor permitem ver as coisas com mais clareza. Ou seja, Forjaz não transformou o cancro num fim em si mesmo, mas sim num meio que permite ver os problemas com outra limpidez. Quando começou finalmente a falar de empresas (Portugal como nação gourmet e a produzir produtos para os ricos, a patética falta de entreajuda entre os empresários portugueses, etc., etc.), a substância do seu discurso estava a ser iluminada por uma luz criada pelo cancro. Sim, Forjaz conseguiu o impossível, conseguiu fazer luz a partir da matéria mais escura, transformou o cancro numa espécie de tocha olímpica.    

Todos nós usamos as nossas doenças para alcançarmos uma superioridade moral ou emocional sobre os outros. É humano. Gostamos de transformar o nosso sofrimento numa posição elevada que legitima sermões e dedos em riste, e achamos sempre que a doença faz de nós o centro do mundo. Todo o homo sapiens é assim. A sub-espécie tuga é ainda mais. A palestra de Forjaz foi notável, porque apareceu em contramão, porque negou esta tendência natural para a autocomiseração. Nunca irei esquecer a forma como ele evitou o torvelinho xaroposo através de uma tranquilidade esfíngica perante a morte, uma tranquilidade retirada de uma fé absoluta em Deus, uma tranquilidade de quem sabe que esta vida é apenas um ritual de passagem, uma tranquilidade de quem conhece um pormenor: a lição de vida é não dar lições de vida a ninguém.