A Tempo e a Desmodo

A lengalenga do "mercado malvado"

5 julho 2010 9:00

Henrique Raposo (www.expresso.pt)

Anda por aí uma teoria pedestre que reza assim: os mercados substituíram os políticos no centro da política, logo, as medidas de austeridade são ilegítimas. Cuidado: foram os políticos que nos endividaram.

5 julho 2010 9:00

Henrique Raposo (www.expresso.pt)

I. Robert Skidelsky (biógrafo de Keynes) deu voz às angústias neo-keynesianas que estão na moda: "quem nos governa? Os políticos ou os mercados financeiros? Suspeito que este será o principal campo de batalha político dos próximos anos". Segundo Skidelsky, os políticos europeus demitiram-se e entregaram as chaves da governação aos mercados financeiros.

II. Ora, este raciocínio é, para começar, desonesto. Skidelsky dá a entender que foram os mercados que atacaram a política; dá a entender que esta crise é o resultado da acção dos mercados financeiros. Por outras palavras, Skidelsky olha para o efeito (mercados a apertar as exigências) e não para a causa (estados viciados em dinheiro emprestado). Perante isto, é preciso relembrar o óbvio: foram os políticos que pediram dinheiro emprestado aos mercados (actividade conhecida pelo eufemismo de "dívida pública"). Durante várias décadas, os governos europeus governaram com base na dívida pública. Ou seja, a Europa social-democrata foi construída com base no pérfido capitalismo global. Aquilo que estamos a assistir não é um duelo entre "política" e "mercado". Estamos a assistir, isso sim, ao colapso de uma forma de governar assente no dinheiro emprestado. 

III. Ao contrário do que pensa Robert Skidelsky, o grande embate político dos próximos anos não será "estado vs. mercado" (aliás, esta dicotomia revela uma mentalidade jurássica). O grande desafio dos próximos anos passa, isso sim, por colocar a política dentro do campo do "possível". Ao venderem dívida de forma insustentável, os políticos colocaram a política no campo do "desejo". Os políticos desejam fazer uma grande obra, mas não há dinheiro. Não faz mal, o Estado pede emprestado. Os políticos desejam construir um Estado Social que satisfaça os desejos da população, mas não há dinheiro. Não faz mal, o Estado pede emprestado e depois paga. Ora, foi este mecanismo mental (o desejo abastecido pela dívida) que nos conduziu ao ponto em que estamos: países inteiros estão afogados em dívida, porque os seus políticos não respeitaram a "realidade" e o "possível". É preciso resgatar a política do "desejo". É preciso trazer a política para o "possível".