Luz e lata

Vim num avião para morrer com o meu pai: "mãe!"

4 maio 2013 8:00

Fátima Pinheiro

4 maio 2013 8:00

Fátima Pinheiro

O Dia da mãe é amanhã e hoje lembro-me de ti. Claro que é imposível pensar em ti, sem pensar nela. A culpa é do Benfica, se queres saber. E tu, era mesmo dela que gostavas. São ainda a minha escola do amor. E escrevo estas linhas, não porque não saibas tudo isto, mas... é só para mimar. E para poder gritar bem alto, o nome dela outra vez.  E ser "enchida" de Beleza. No fundo, no fundo, somos todos uns "enchidos". Resta saber "de quê". Nunca percebeste porque é que fui estudar aquelas coisas esquisitas. Mesmo assim deixaste e pagaste. O nosso coração passa pelo lugar onde está o nosso dinheiro, é verdade.  Mas quero que saibam, mais uma vez, que me fizeram, e fazem, mesmo feliz. E isso, não há euro que pague.

Estavas a morrer, pai. E eu do lado de lá do oceano. Não aguentaste viver sem a mãe. Tinham passado quatro meses da morte dela. E em três meses o "irmão" cancro apareceu  - este S.Francisco da "natureza" dá-me "cabo" do juízo. Sim "irmão". Assaltou-te, e não houve tempo para teres qualquer tipo de "hipótese". No pancreas é tramado.

Estavas provavelmente para vir viver connosco, para não estares sozinho. Não suportavas estar sem ela. E quando nos visitaste a primeira (e última) vez, adoraste os Estados Unidos (aquela vista do topo das torres gémeas, foi qualquer coisa! Tive que te segurar o queixo, o tempo todo...). Mas as coisas aconteceram de forma diferente. Adiei o vir ver-te, na esperança que ficasses melhor. E depois o teu querido benfiquista tinha os meses que tem os dedos de uma mão. Mas a hora chegou, e ligaram-te a um máquina amiga. Nem fiz mala. E "cheguei" muito antes do avião. O mesmo se passou quando ela partiu. Mas com a mãe foi mesmo de surpresa, eram lá 4 da madrugada quando me acordaram a "dar" a notícia.  E o avião que apanhei chegou "atrasado", tu sabes. Mas foi pelas mãos da Mariana (que sempre me pega ao colo nos "arrivals") que a vi, já diferente.

O Hospital Amadora Sintra era uma novidade para mim. Os outros que te estavam a acompanhar, tinham ido descansar um pouco. Afinal quiseram "poupar-me", pelo telefone; estavas mesmo por um fio. Esperei então um pouco e levaram-me ao pé de ti. Estavas, também tu, "novo" para mim. Irreconhecível. A "malvada" irmã não nos poupa. Percebi que era a hora. Demos as mãos e comecei a falar contigo. Foi  uma conversa "nova", para os dois. Soube que estavas a ouvir porque as máquinas começaram a apitar. Ninguém "ralhou" comigo, e eu deixei-me ficar assim (se fosse na "América" não teriam deixado...). Disse-te que deverias estar cheio de medo mas que tudo ia correr bem. Disse-te tudo, tudo, como sabes. Rezei-te o terço, ao som dos coros daqueles sons e luzes de muitos botões. E tu, aparentemente, nada. Mas tive que te dizer adeus. Nem sei como. Inventei como pude, para que me ouvisses. A mim? Disseste-me tudo.

Olha a pinta: conseguimos um penalty depois do prolongamento

Vim depois para fora da sala das máquinas e fui à procura de um padre. Por sorte - foi mesmo de propósito...-  estava ali mesmo à minha frente um, e pedi-lhe logo a santa unção. Ele entrou e saiu da tua sala, em coisa de três minutos. Disse-me: "se soubesse que era para isto, não tinha vindo". A minha querida madre igreja é assim: um instrumento humano do divino. Como eu e tu [agora já sou eu a falar "sozinha"; mas também como já vais à frente...]. Gente como tu e eu. O Verbo, que "tudo sabe", ou melhor, que é o Logos (que tanto atazanou os gregos, e de quem tanto recebemos)  faz-se "carne" nas nossas "trapalhices" - não é "apesar" delas , é, e paradoxalmente, através delas. E muitas vezes são trapalhices "daquelas fortes", como diz a Guadalupe. Vamos lá saber porquê. Mas não penses que não pergunto todos os dias: "mas porquê?". Porquê, porquê, porquê. E não tenho temas "tabu". Eu sou mesmo enchida e metida com tudo. Quando pedi ajuda à Ângela para me batizar este Blogue, ela, que me conhece como poucos, acertou em cheio: "Luz e lata". A Luz recebo-a toda, e à "borla", de "graça"; a lata sou toda eu.

Mas - voltando ao padre - olha a pinta: conseguimos um penalty depois do prolongamento, pai. O sacramento realiza o que as palavras que o acompanham dizem. Não é como um sinal de trânsito. Quando alguém dizia "fulano tal vai à missa, e depois faz isto e aquilo", a mãe respondia: imagina o pior que seria se não fosse. É verdade. Somos de um belo barro. E pronto, foste. Logo a seguir.

Hoje, em que me tenho lembrado "muito" do desassossego que trazemos nas veias, quis partilhar este momento. Para me lembrar, em voz alta, que a vida está e não está nas nossas mãos. Que não adiantam agitações e falsas batalhas, mas sim a inquietude de saber viver o que está a acontecer. Inquietude? Sim, porque parar é morrer, e eu tenho sede do "bom", agora. E o que está a acontecer? Só eu é que sei, mas posso gritá-lo. Tal como ninguém morre por mim, ninguém deveria viver por mim (Estúpida, às vezes deixo!).

E o teu benfiquista favorito (deves saber que vai fazer 18 anos no mês que vem) pulou connosco na banhada que demos aos turcos. É pior que tu e o avô juntos. Aí lembrei-me tanto, e chorar só de alegria. E dia 15 vai ser de arromba não vai? Bem que me podias dizer ao ouvido o resultado...mas perdia a graça, não era?

A vida é mesmo bela e a carne da minha liberdade é dramática. Ainda bem. Desculpa se disse o que não querias. Mas tenho quase a certeza que não. Sempre confiaste em mim. O que ainda me ensina a confiar nos outros. É que hoje lembrei-me em especial de vocês. Como nos outros dias. Corre nos sangues. Nos nossos e no dos outros.