Luz e lata

Passos Coelho lava mais branco?

4 maio 2014 9:10

Fátima Pinheiro

Alargo a razão?

luz e lata

4 maio 2014 9:10

Fátima Pinheiro

A Europa anda mal vista. Depois da entrada e saída da troika, pior. Então que faço eu às Europeias de 25 de Maio? Dizem que nos sentimos "periferia" (Papa Francisco). Oiço: "mas para que serve a Europa?" (Weiler) Não te acompanho mais!. E se deixares de ser minha, deixarei de ser quem era? Não interessam as politiquices acerca de quem tem a culpa da situação. A política não serve para isso; serve sim uma vida melhor, sem máscaras. De que vale as coisas não serem o que gostaríamos que fossem? Ou seja, de que vale tudo ser, muitas vezes: palhaçada, oportunismo, ignorância, sacanice, alienação, enriquecimento ilícito, roubo, mentira, exercício do poder pelo poder? As Europeias podem não ser a minha cara. Mas sê-lo-á a Europa? Responder a esta pergunta vai moldar-me no votar. Trata-se duma questão pessoal. Porquê? Porque sem que eu faça o trabalho de ver quem afinal sou, a Europa será para mim um zero à esquerda.

A Europa nasce da fé cristã: pessoa, trabalho, matéria,  progresso e liberdade. Como? A pessoa é vista como nunca foi; o trabalho não é escravidão, mas atividade à imagem do Deus; a natureza não é vista dualisticamente, a matéria vale também; o progresso faz sentido porque a história não é compreensível sem que não haja nada para compreender; o homem não é totalmente livre porque não se fez (e não se faz) e, portanto depende. Ou depende de Deus, criador, ou depende da cadeia das circunstâncias; estas serão a "cara" de um poder mais ou menos "descarado". O tempo passou, e hoje tudo isto parece desvanecer. Se isto fosse o facebook, perguntaria à Europa: "o que estás a sentir?". Ela diria: "estou em crise".

Por ironia a palavra "Europa" inclui duas primeiras letras juntas a dizer EU. Mas com ou sem ironia, sem que eu me resolva no que entendo por mim própria, nada entenderei daqueles pilares fundadores. De facto: " Ainda que eu fale a língua dos anjos, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios de toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita (...)" - carta de S.Paulo dirigida aos Coríntios, mas que me é dirigida também a mim. Porquê? Porque me corresponde. É a minha cara. Não é obvio, eu sei. Mas sou livre e recomeço: "A liberdade pressupõe que, nas decisões fundamentais, cada homem, cada geração seja um novo início" (Papa Francisco, Spe Salvi, 24).

Recomeço então a ver. "O drama moral, a opção pelo bem ou pelo mal, começa pelo olhar, pela decisão de olhar ou não o rosto do outro." (Ratzinger, A Europa de S.Bento. Na crise de culturas, Aletheia, p.59). A consequência será então uma Europa: aberta ao outro, ao diferente, a potenciar uma amizade sólida; de economia solidária, e insatisfeita com as austeridades que às vezes tem que ser; triste com nacionalismos irrealistas e anti-históricos; legislando a favor de vínculos, não se deixando formatar por quaisquer novos direitos individuais; fazendo a paz com todas as fés, incluindo a cristã, que esteve precisamente nas suas raízes. "O único padrão para avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser da plenitude da existência humana, de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da dita época" (Romano Guardini citada pelo Papa Francisco em Evangelii Gaudium, 224).

Dia da mãe, em que se vai falar de saídas limpas recordo hoje o encontro entre Habermas e Ratzinger, quando, em 2004, discutiram "as bases pré-políticas e morais do Estado democrático". O filósofo e o cardeal debateram razão e fé, capitalismo globalizado, moral nas sociedades pluralistas e mediáticas, interculturalidade, poder e direito comum. Habermas centrou-se nisto: "Os secularizados não devem negar o potencial de verdade às visões religiosas do mundo". Por sua vez, Ratzinger põe também o seu dedo na ferida: "O homem desceu até ao fundo do poço do poder, até à fonte da sua própria existência" (escrevi aqui sobre isto, quando há meses me cruzei com ele na Gulbenkian).

Mas Habermas não está interessado em olhar para os fundamentos da existência humana. Ele é o sociólogo, não o filósofo (apesar da sua tese de doutoramento ser em filosofia). Investe numa Utopia que nega ou não se interessa pela natureza humana. O seu discurso pragmático (ou mais uma forma de pragmatismo) preocupa-se com metas humanas para este mundo em que vivemos; metas que, desde Kant, não se podem encontrar no homem como ser existente, não podem ser encontradas no seu ser, mas sim no dever ser: na responsabilidade moral ou nos fins que a razão é chamada a realizar através da cultura e da organização da sociedade. A razão é, assim, desventrada das suas perguntas socráticas; é apenas pensada como empenho ético (não na sua inquietação ontológica) da sua própria auto-realização. Quero andar encolhida ou alargar a razão?