24 abril 2014 8:00
24 abril 2014 8:00
"Como resposta ao desafio do Teatro São Luiz de criação de um espetáculo que pudesse ser pertinente nas datas em que deveria ser apresentado, o 40º aniversário do 25 de Abril de 1974, e à semelhança do que Pasolini fez com o seu Pílades, resolvemos adaptar a tradução de Frederico Lourenço do Íon de Eurípides (...) Com as histórias da mitologia clássica, propomo-nos construir um espetáculo que fecha com uma página de Pasolini e pretende falar dos nossos dias ou do sentimento de crise política do nosso tempo." (Luis Miguel Cintra)
"Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a substância do tempo", são palavras de Sophia, que encabeçam o texto de 8 páginas que o encenador escreveu sobre o espetáculo, do qual destacamos as palavras conclusivas: "Estou habituado a pensar que representar os clássicos nos ajuda a compreender o presente. Neste caso convenci-me do contrário. É difícil não tornar em presente os textos passados que interiorizamos ao voltar a representá-los. É a memória do 25 de Abril que nos ajuda a entender Eurípides. E a arte daqueles que já são passado para uns mas aos mais velhos ainda nos parecem presente (a arte faz coisas destas): são a poesia de Sophia, as duas canções do Zeca, a melancolia do violoncelo de Casals, a citação do Evangelho de Pasolini com o mesmo "Sometimes i feel like a motherless Child", a sua lucidez revolucionária, quem dão forma à nossa tentativa de conhecer uma decepção antiga e de a tornarmos comparável com um novo presente: a da necessidade da mentira nos cargos de poder."
Do mesmo texto de Luis Miguel Cintra transcrevemos o que se segue.
"Começámos por pôr em cena a própria proposta. Hora local: 2014, 25 de Abril, 40 anos depois. À falta de autorização para usar a cortina anti-fogo no S.Luiz, porque se se gastasse podia já não funcionar se houvesse fogo a sério, as cores da nossa bandeira. Lá fora, no Chiado nalgum altifalante camarário, à mistura com o nosso manneken-pis, o Fernando Pessoa da Brasileira, em seu tempo amorosamente esculpido pelo professor Lagoa Henriques, uma canção antiga que nos faz chorar, o menino d'oiro do Zeca Afonso, e mais ainda a outra canção do menino, a fechar o espetáculo, a da dolorosa melancolia da esperança. Canção de embalar. Lembramo-nos do edifício da Pide, ao lado do São Luiz, das mortes que ali houve no dia 25 de Abril de 74. Dos poucos tiros que houve, quase todos foram aqui sobre 4 jovens, diante do São Luiz, vindos da varanda da Pide. Eu andava por ali. A poucas centenas de metros foi o episódio do largo do Carmo em que se sentia o perigo, eu vi, muito mais que a alegria da vitória como quase passou a ser História depois da reconstituição do filme Capitães de Abril, em que também gosto de ter atuado, do lado da reação, provavelmente igualmente falso, como diria o verdadeiro Alferes Cabrita, reacionário. Ser ator tem destas coisas, dizemos muitas vezes a verdade e o seu contrário. Passaram 40 anos sobre os mesmos locais e dão a palavra à Cornucópia: em cena os mais velhos para falarem ao público, darão a ver o seu trabalho honesto e de alguns outros, para grande alegria nossa, alguns dos que melhor nos continuam, 3, poucos, porque são esses os dados que nos dita a produção. Amigos. A lealdade para com o público não nos permite escamotear o arrepio. Não há violência cénica que possa competir com o confronto da memória com o presente. Valha-nos o escândalo de começar com Zeca Afonso um Eurípides truncado e enxertado de óbvias piscadelas de olho do mais cerrado mau gosto, como a valsa da Traviata, a Ave-Maria de Gounod ou o hino do MFA. Tanto que já muito tarde, nos últimos ensaios, acabámos por dar a voz a um poema de Sophia que de tal maneira me formou, que nele reencontro o que me convenceu a escolher este texto, aceitar e até já agradecer a encomenda, e o que assim aprendi(...). Percebi, ao pôr sobre a mesa elementos das duas épocas que se confrontam neste palco, a 'revolução dos cravos' da 2ª metade do século XX e a Atenas do século V, ligadas pela ideia comum de Democracia, e em cada uma delas links internos para os respetivos passados, o da implantação da República e o 28 de Maio que lhe pôs fim, e na antiga Atenas, o tempo anterior à Democracia, quando ainda havia reis, tempo passado também para Eurípides e para o público da sua estreia, o como são tempos terrivelmente incompatíveis e quanto o choque da decepção democrática nos aguçava a compreensão do texto antigo. "