27 junho 2013 8:00

Guimarães Rosa: "as coisas estão todas amarradinhas em Deus."
27 junho 2013 8:00
João Guimarães Rosa apagaria hoje 106 velas, uma mais do que aquelas que Manoel de Oliveira irá apagar no próximo dia 8 de Dezembro. No "Grande Sertão: Veredas" (1956) diz ele que "as coisas estão todas amarradinhas em Deus." Pois assim estamos. E digo-o num dos meus mini-contos.
"Vista da terra, a nuvem era branca. Mas isto não era tudo. Havia outros sítios, outros lugares de onde observar. Ela própria, muitas vezes duvidava, se era verde ou azul, amarela ou laranja. Estava tudo tão ligado, e ao mesmo tempo tão disperso, que nem sempre se sabia como era.
Um dia, porém, o sol pô-la mais quente, mais cheia e mais luminosa. Arrastou-se então, a custo, muito, muito mais devagar do que era costume. Foi então ter acima do telhado da casa da colina amarela, que, nesse dia ainda mais amarela ficara. E descansou.
Havia na aldeia um pássaro que costumava cantar, mesmo sem se importar se o seu canto era ouvido. E nesse dia, o pássaro, que costumava cantar sozinho no telhado daquela casa, parou de tremer e deixou-se abraçar pelo céu, nesse dia bem mais acolhedor, como amigos.
O canto que cantava subia, subia, sem parar, casando com o ar. A nuvem, que descansava, acordou e de tão cheia que estava nem se lembrou da casa. Nem do pássaro que tantas vezes ouvira cantar. Mas a luz e o volume trazidos pelo sol limparam-lhe o esquecimento e beijaram-lhe os seus belos recortes de nuvem. Era de facto muito bela e harmoniosa. Maior agora, mas ainda mais bela e harmoniosa. Foi um acordar calmo e comovido. Não estava à espera.
E depois de encher o peito, começou a ouvir, no que parecia ser muito ao longe, o casamento do ar e do canto. Era uma melodia diferente, que lhe dizia que o medo acabara; ele sabia, tinha deixado de tremer e cantava a bandeiras despregadas, já sem o medo da solidão, porque esta tinha desaparecido, e, sabia-o, para sempre.
Ouvia então a voz que lhe dizia que chegara um tempo diferente, uma hora nova, um pedaço de paraíso, ou mesmo, até - era o que lhe parecia chegar aos ouvidos - era mesmo a hora do paraíso, em que nada, nem ninguém, nunca mais lhe faltaria. Em que os seus olhos jamais parariam de contemplar, os ouvidos de apreciar, o coração de cantar. Um tempo novo, em que o choro terminaria. Em que só chorar de alegria faria sentido.
Um tempo novo em que o dia e a noite seriam uma só coisa , em que o sol e a lua seriam o mesmo, e as estrelas e o os raios do sol a mesma coisa. Em que os corações, embora diferentes, sentiriam um mesmo gosto do amor, que era agora ainda mais amado por amar como nunca. Uma plenitude, uma felicidade, sem rival.
Então a nuvem levantou-se, comoveu-se ainda mais. Estava tão farta das coisas banais, do tédio e o fingimento, que resolveu enterrar o passado. A chuva começou então a cair, inexplicavelmente. Ninguém esperava que chovesse num dia assim, como aquele. Mas a música do canto, daquele rouxinol solitário que cada dia começava de novo, sabendo que um dia ia chegar um sol diferente, essa música diferente tinha um poder. Também novo. Poderoso como nada. E a chuva não parava. Era a nuvem que, levantada, chorava, chorava."