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101 canções que marcaram Portugal #101: ‘Com que Voz’, por Amália Rodrigues (1970)

Amália Rodrigues na foto de capa do álbum "Marchas Populares", de 1969
Amália Rodrigues na foto de capa do álbum "Marchas Populares", de 1969

Em 1970, Amália voltou a juntar-se a Alain Oulman para compor um dos álbuns mais aclamados do seu percurso, um momento maior na sua discografia. Este álbum estava assente num poema de Camões, que lhe deu nome. Durante décadas, Amália Rodrigues recriou o fado, deu-lhe ondulação e novos cambiantes. É a expressão maior da nossa portugalidade musical e o maior símbolo e referência da música que se fez e continua a fazer em Portugal. ‘Com que Voz’ é a última de 101 canções que marcaram Portugal

Jorge Cerejeira

‘Com que Voz’, Amália Rodrigues (1970)

“Dai vós favor ao novo atrevimento / Para que estes meus versos vossos sejam / E costumai-vos já a ser invocado” escreveu Luís de Camões a D. Sebastião. Os seus “Lusíadas” seriam lidos em Sintra ao rei a quem os dedicava. O jovem D. Sebastião tinha dezoito anos e, reza a lenda, ouviu, do próprio Luís de Camões, os 8816 versos que compunham a obra épica. Quanto tempo terá demorado a ler as 1102 estrofes ao rei coroado quatro anos antes e a quem previa um futuro de glória – como herdeiro de uma ínclita geração?

Luís de Camões escreveu “Os Lusíadas” e o resto. O resto entenda-se por lírica – em que desenvolve os seus dogmas, as suas reflexões, o seu intimismo. São versos invariavelmente autocentrados, como se o ‘eu’ lírico estivesse no centro de um cosmos, que, por si, se mobiliza para o fazer infeliz. Nesta sua lírica, escreveu para Amália – ainda que não o soubesse. Todavia, já que acreditava no fado, também se supõe que acreditasse que este destino estava já traçado.

Amália tentara ler “Os Lusíadas”, mas ficara enredada no plano da mitologia (às tantas, não sabia quem era o pai do filho respetivo ou vice-versa). Não seria, por essa razão, a obra exultante de Camões que a prendeu. Prendeu-a os seus poemas dispersos, escritos durante toda uma vida de erros, má fortuna e amor ardente. Aqueles versos traziam em si o fado. Eram versos para serem cantados. E cantou-os, Amália. Como outros o cantaram. Como outros viram que Camões também sabia fazer versos para serem musicados – não pela sua métrica ou rima, mas pela comoção que impunha e pelo ondear das palavras. Amália considerava Camões um grande fadista – tout court – não por ter perdido para o mar a sua Dinamene, não por ter estado a viver como um indigente em Moçambique, não por ter perdido o seu olho direito em Ceuta, não por ter vivido (de novo) como um desvalido na Lisboa decadente dos anos de 1570 ou por ter atravessado uma vida de desdita. Camões era um grande fadista porque acreditava no seu destino, porque tinha arte e engenho para o expor em verso e porque muitos desses versos encaixavam como uma luva de pelica em fados que se iriam compor 400 anos mais tarde. Porque Camões era, enfim, povo, errância e comoção.

Em 1970, Amália voltou a juntar-se a Alain Oulman para compor um dos álbuns mais aclamados do seu percurso. A poesia foi escolhida por Amália, a música composta por Oulman. De tanto ler, de tanto escolher, chegou a estar à beira da depressão – porque sofria com os dramas dos sujeitos líricos. Porque se transpunha para a sua existência. Neste período, arranjou ainda assim clareza para escolher os melhores – Camões, David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Ary dos Santos, Cecília Meirelles e Manuel Alegre. Já tinha cantado Camões, em 1965 (‘Lianor’, ‘Dura Memória’ e ‘Erros Meus’), para composição de Oulman, mas foi com este álbum que nasceria um momento maior na sua discografia. Este álbum chamar-se-ia precisamente “Com que Voz”, aproveitando o poema de Camões.

Amália estava no auge da sua carreira – auge que durava há mais de quinze anos e que iria perdurar por mais quatro, até ao 25 de Abril de 1974. Tinha 50 anos. Estava resplandecente, com uma voz rouca, quente, descarnada, excessiva, ainda capaz de amplas inflexões e modulações. Era uma mulher já madura, que mantinha ainda um grande poder de encantamento. Tinha passado as décadas anteriores sobretudo fora de Portugal, aclamada fora de Portugal (não tendo deixado de o ser cá dentro), enchendo as maiores salas por todos os continentes.

Com vinte anos, era já a voz mais bem paga de Portugal (ganhava mil escudos por noite, vinte vezes mais que Alfredo Marceneiro, um dos fadistas da mesma casa onde atuava, o ‘Retiro da Severa’, onde se estreara um ano antes, em 1939). Cinco anos mais tarde, propuseram-lhe ganhar 220 contos por mês (o equivalente a mais de 200 mil euros atuais) no Brasil – com um contrato que incluía fazer publicidade ao Guaraná Antártica. Dessa vez não aceitou, mas haveria de regressar ao Brasil – para temporadas breves e longas – e ser ovacionada tanto quanto as maiores vedetas nacionais e internacionais. O mesmo acontecia nos Estados Unidos, em França, em Itália, na América Latina, na Escandinávia, na Ásia, por todo o mundo. Amália Rodrigues – sobretudo durante as décadas de 50 e 60 – era uma vedeta internacional, como o eram Maria Callas ou Edith Piaf. Poderia ter ficado em qualquer um desses países grandes, mas seria forçada a cantar numa língua que não era a sua e Amália gostava de sentir em português. Não quis arriscar cantar Cole Porter ou Ira Gershwin, que lhe tirariam a espontaneidade.

O fado viajava mal. Era difícil, para quem não dominava o português, ouvir o fado tradicional, pungente, solene, durante duas horas. Viajava com Amália, todavia – porque era Amália e porque alternava o fado tradicional com canções mais vivas (‘Lisboa, não sejas francesa’ era uma das que cantava com regularidade) e algumas canções espanholas e sul-americanas. Em Portugal, era uma fadista; no estrangeiro era uma artista. Continuava porém a ser acarinhada no seu país. Tinha infletido o fado. Tinha nascido com a alma do fado – sorvido da Mouraria, da Madragoa, de Alfama ou do Bairro Alto –, mas tinha-lhe dado um novo destino. Quando cantava o fado, inventava-o. Recriava-o. Criava-o. Deu-lhe ondulação. Novos cambiantes. Novos valores e novas extensões numa mesma nota.

Amália Rodrigues era uma fadista comprometida apenas com o seu temperamento. Com o seu temperamento de Lisboa e da Beira Baixa, onde estavam as suas origens. Os seus outros temperamentos – das sonoridades andaluzes, francesas, brasileiras ou americanas – haveria de os sorver mais tarde e não haveria de os trazer para o fado. Manteve-se fiel a esse temperamento – com tanto de fatalista como de blasé. Nas sessões de gravação, nos estúdios Valentim de Carvalho, já aclamada, levava o jantar de casa, que partilhava com os músicos, e só começavam a gravar depois, noite fora. Amália cantava sentada e quase sempre ao primeiro take, como se aquelas letras e aqueles acordes tivessem estado sempre dentro de si.

Em palco, conseguia intrometer-se na intimidade do público. Com o seu 1,58m, agigantava-se. Vestida de negro ou colorida. Solene. Dramática. Serena. Voluptuosa. Intensa. A cabeça inclinada para trás. Sabendo ter o poder de encantamento. Falava pouco em palco: limitava-se a agradecer, a anunciar o que ia cantar e a saudar o público. Mais do que forma, Amália Rodrigues era essência. Que fazia de si, da sua figura e da sua voz um instrumento só. Comprometida consigo mesma e com o público, com as palmas. Como se aquelas centenas de pessoas que se sentavam para a ver atuar se tivessem dedicado, desde sempre, a amar a poesia portuguesa.

Depois do 25 de Abril, tentou-se calar-se-lhe as palmas. Espalharam-se boatos. Vedaram-lhe a rádio, a televisão, os jornais. A maioria dos amigos de sempre ignoraram-na. Fizeram de Amália mais triste. Apenas o público não deixou de a aplaudir. De a aclamar. A contrapor um período infeliz – que a tinha apanhado desprevenida. Reergueu-se, todavia. Aprendeu a moldar o seu percurso, a partir daí, com mais severidade e menos fantasia. Cantou ainda por mais vinte anos.

Continuou a morder e a acariciar as palavras, como tinha feito a primeira vez que cantara em público (o fado ‘Mouraria’, em 1939, no Retiro da Severa). A transpor para o público o élan de que se compunha. A transformar o fado e a servir-lhe de guia. Amália Rodrigues é a expressão maior da nossa portugalidade e o maior símbolo, a maior referência, da música que se fez e faz em Portugal.

A alegria do passado
De tanto mal, a causa é amor puro
Devido a quem de mim tenho ausente
Por quem a vida e bens dele aventuro

Ouvir também: ‘Povo que Lavas no Rio’ (1962). Do álbum “Amália Rodrigues”, com um seu busto na capa, foi o despontar da sua parceria com Alain Oulman e com grandes poetas (David Mourão-Ferreira, Luís de Macedo e Pedro Homem de Mello). Este último escreveu ‘Povo que Lavas no Rio’, um dos fados que a Amália mais custava cantar: “De vez em quando, começo a cantar e começo a chorar e quase que não posso cantar certos fados. Um é o ‘Povo que Lavas no Rio’. Quando chego às tábuas do meu caixão, já eu estou quase no caixão, já estou quase morta, já sinto as flores e tudo.”

Nota final do autor

Em 2019, comprei na livraria Saraiva, no Rio de Janeiro, um livro de Nelson Motta. O livro chamava-se “101 canções que tocaram o Brasil”. Achei que poderia empreender um projeto semelhante em Portugal. A ideia germinou durante alguns meses. Tal como Nelson Motta nesse livro, não me interessava escrever crónicas wikipedianas, que fossem um enumerar de factos cronológicos. Interessava-me sobretudo sorver a génese dos cantores, das bandas. Despojá-los da sua aura mediática. Contar as suas histórias para além da música. Contar histórias que se cruzassem com a música. Quis sobretudo aclamá-los por via de grandes canções que marcaram Portugal.

Esta rubrica teve o objetivo maior de homenagear a música portuguesa e os artistas que a fizeram. As escolhas (pessoais) não são, nunca são, consensuais. Poderia chamar-se ‘1001 canções que marcaram Portugal’ que continuariam a não ser consensuais.

Em fevereiro de 2020, fiz chegar ao Miguel Cadete algumas destas crónicas, que considerou enquadrarem-se na essência da BLITZ, que é a maior referência editorial na área da música em Portugal. Fiquei e estarei para sempre, por isso, muito agradecido. Agradeço também ao Luís Guerra, editor da BLITZ, pela sua constante disponibilidade, simpatia e gentileza. Por último, agradeço aos leitores que, discordando, criticando, aplaudindo ou aclamando, foram sempre o fim maior deste longo compromisso.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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