Exclusivo

Blitz

Já lemos o novo livro de Bob Dylan: tem rock and roll primevo, música italiana alucinogénica e até fado

Bob Dylan
Bob Dylan

Em “The Philosophy of Modern Song”, que em dezembro tem edição portuguesa, acompanhamos Bob Dylan a dissertar sobre os mais improváveis assuntos, de assassinos em série à guerra civil russa. Não é um tratado sobre a filosofia da canção moderna — é um pretexto para filosofar a partir da canção moderna

Antes de mais, como se deve, a capa: à esquerda, num sorriso de demónio falsamente ingénuo, Little Richard; à direita, Eddie Cochran, o elegante all american boy, James Dean do rock’n’roll, morto aos 21 anos; ao centro, onde poderia prever-se que Elvis Presley completaria a santíssima trindade, uma figura não imediatamente identificável e de género indeciso, a única que empunha uma guitarra. Quando, enfim, descobrimos de quem se trata, não duvidamos que, em “The Philosophy of Modern Song”, publicado 18 anos após “Chronicles Vol. 1”, Bob Dylan — aliás, Blind Boy Grunt, Tedham Porterhouse, Robert Milkwood Thomas, Boo Wilbury, Jack Frost, Sergei Petrov e, mais significativamente, Alias — desejou deixar claro que ninguém está imune à síndrome “je est un autre”, primeiramente identificado por Rimbaud e, no caso dele, extensamente estudado em “I’m Not There” (filme de Todd Haynes “inspirado pela música e pelas muitas vidas de Bob Dylan”). A figura misteriosa, então: Alis Lesley, desde agora, a mais famosa das diversas female Elvis Presley da época, com uma meteórica carreira de dois anos, um único single (sem qualquer sucesso), e a medalha de Elvis ter feito questão de assistir a um concerto dela em Las Vegas.

Simon & Schuster, 2022, 399 págs.(edição portuguesa, “A Filosofia da Canção Moderna”, pela Relógio d’Água, prevista para dezembro)

Com 399 páginas, 66 textos em torno de outras tantas canções e uma generosa coleção de mais de 100 imagens e fotografias (relacionados direta ou indiretamente com os tópicos abordados), “The Philosophy Of Modern Song” é muito mais uma natural sequência de “Theme Time Radio Hour” — o fabuloso programa de rádio tematicamente estruturado que, entre 2006 e 2009, Dylan apresentou na XM Satellite Radio e, depois, na Sirius Satellite Radio, no qual músicas de todos os géneros (1894 por 1158 artistas) coexistiam com histórias e farrapos de informação avulsos, jingles, recitações de poesia, receitas de cocktails, ou elucubrações acerca deste mundo e do outro — do que o (impacientemente) aguardado segundo volume de “Chronicles”. Se, sobre “Theme Time Radio Hour”, Tom Waits uivou “He’s better than Wolfman Jack!”, desta vez, somos convidados a visitar a jukebox privada de Dylan e a acompanhá-lo enquanto disserta sobre os mais improváveis assuntos e temas que, por vezes, mantém apenas uma vaga relação com o disco ou o músico que tomaram como rampa de lançamento. O que, não se tratando, de todo, de um “best of” ou de um “greatest hits” da “canção moderna” — na verdade, das 66, apenas duas foram publicadas no presente século, a maioria data dos anos 50 e só quatro são interpretadas por cantoras — explica por que motivo, para só citar uns quantos, Joni Mitchell, Leonard Cohen, Chuck Berry, Tom Waits, Billie Holiday, Bessie Smith, Odetta, Edith Piaf, Patsy Cline, Lennon/McCartney, Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Skip James ou John Lee Hooker estão ausentes mas uma considerável percentagem de ilustríssimos desconhecidos aqui se reúne. Na realidade, este não é um tratado sobre a filosofia da canção moderna mas um pretexto para filosofar a partir da canção moderna.

‘Money Honey’, de Elvis Presley, por exemplo, onde este é apenas referido de passagem: “A arte é um desacordo. O dinheiro é um acordo. Eu gosto de Caravaggio, tu gostas de Basquiat. Gostamos ambos de Frida Kahlo e Warhol não nos aquece. A arte alimenta-se destas disputas. É por isso que não pode existir uma arte nacional. Quando essa tentativa ocorre, apercebemo-nos do limar das arestas, da tentativa de incluir todas as opiniões, do desejo de não ofender ninguém. Demasiado depressa, transforma-se em propaganda ou comercialismo rasteiro. Não que haja algo errado com o comercialismo mas, como tudo que tem a ver com dinheiro, baseia-se num salto de fé mais abstrato do que o abstracionismo geométrico de Frank Stella.” No fundo, tudo poderia reduzir-se a poucas regras: 1) “Se uma canção nos emociona, isso é o que importa. Não tenho de saber o que ela significa. Já escrevi sobre tudo nas minhas canções. E não me preocupo nada com isso”; 2) “Conhecer a biografia de um artista não nos ajuda especialmente a compreender uma canção. Aparentemente, o que Frank Sinatra sentia por Ava Gardner é a matéria de ‘I’m a Fool to Want You’ mas isso são apenas banalidades. O que importa é como uma canção nos faz sentir acerca de nós próprios”; 3) “Uma forma de avaliar um autor de canções é reparar em quem são os intérpretes que as cantam. Outra é verificarmos se elas continuam a ser cantadas”.

Esta última regra surge a propósito de ‘Pancho And Lefty’, de Willie Nelson e Merle Haggard, na qual Dylan encontra um ponto de apoio para se lançar numa análise de classes da Revolução Mexicana. Não é caso único: a propósito de ‘There Stands the Glass’, de Webb Pierce, desenterra a história de Nuta Kotlyarenko — nome artístico, Nudie Cohn, judeu ucraniano fugido aos pogroms da Rússia czarista, convertido em costureiro de vedetas country —, quatro Presidentes americanos e dois Papas (e Dylan pega no pretexto para falar de si enquanto recorda Kotlyarenko: “Como acontece com muitos que se reinventam, os detalhes biográficos, por vezes, são nebulosos...”), e ‘Blue Suede Shoes’, por Carl Perkins, parece-lhe inteiramente apropriada para se debruçar sobre Felix Edmundovich Dzerzhinsky, isto é, Felix de Aço, fiel comparsa de Lenine e Estaline e dirigente da Cheka, primeira organização da polícia política soviética: “Durante o Terror Vermelho, no início da Guerra Civil Russa de 1918, Lenine perguntou-lhe por quantas execuções era a Cheka responsável. Dzerzhinsky sugeriu que se contasse o número de sapatos e se dividisse por dois.”

“Escutem um fado e a tristeza escorrerá dele, ainda que não falem uma sílaba de português”, escreve Bob Dylan

Quanto a própria matéria das canções, Dylan tem opiniões muito suas acerca dos diversos casos sobre que escreve: “Os Grateful Dead são essencialmente uma dance band. Têm mais em comum com Artie Shaw e o bebop do que com os Byrds ou os Stones”; “O bluegrass é o outro lado do heavy metal. Ambos são formas musicais enraizadas na tradição que, tanto visual como auditivamente, não mudaram durante décadas”; “A country music vai à igreja ao domingo porque passou a noite de sábado à facada, num beco, e a tentar convencer a miúda do bar a levantar a saia até à cintura”; “Os discos de soul, hillbilly, blues, calypso, cajun, polka, salsa e outras formas indígenas de música contém uma sabedoria que as classes altas apenas adquirem na academia”; “Um serial killer poderia cantar esta canção (‘You Don’t Know Me’, de Eddy Arnold). Os serial killers têm um sentido estranhamente formal da linguagem que os leva a falar do sexo como a arte de fazer amor”

Mas nenhuma supera o ponto de vista sobre ‘Volare’, de Domenico Modugno (“Esta poderá ter sido uma das primeiras canções alucinogénicas antecipando em quase dez anos ‘White Rabbit’, dos Jefferson Airplane”), que desencadeia uma especulação linguística inesperada: “Há algo muito libertador em escutar uma canção numa língua que não compreendemos. Vão a uma ópera e verão como o drama salta das páginas mesmo que não percebam uma só palavra. Escutem um fado e a tristeza escorrerá dele, ainda que não falem uma sílaba de português”. Pelo caminho, depois de ampliar desmedidamente o plot original do texto de uma canção, é perfeitamente capaz de se pôr a escrever em rimas (em ‘The Pretender’, de Jackson Browne: “He’s an ice-cream vendor, a drunk on a bender, a moneylender, and he could have been a contender, the pretender has drawing power”) ou de — a meio da abordagem de ‘The Little White Cloud That Cried’, de Johnnie Ray — apresentar uma lista de 26 canções banhadas em lágrimas, nenhuma delas na ponta da língua de ninguém.

Genuína obra-prima de elogio acre-doce temperado de ciumeira é, no entanto, o que escreve sobre ‘Pump It Up’, de Elvis Costello: “Esta canção tem imensos defeitos mas consegue disfarçá-los a todos. Por essa altura, Costello tinha andado a ouvir Springsteen de mais. Mas também tinha ingerido uma valente dose de ‘Subterranean Homesick Blues’. É implacável como são todas as canções dele deste período. O problema é que isso fatigava as pessoas, continham um excesso de ideias que chocavam umas com as outras e eram palavrosas demais. Aqui, porém, tudo é compactado numa única canção. Com o tempo, Elvis demonstraria possuir uma gigantesca alma musical. Dali em diante, comporia música de câmara, escreveria canções com Burt Bacharach, discos de country, versões, soul, música orquestral e para bailado. E, se escrevemos canções com Burt Bacharach, quem quer saber o que as pessoas possam pensar?”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas