Houve um considerando que ecoou desde que foram anunciados estes dois concertos de Fausto Bordalo Dias na Aula Magna: “'Por Este Rio Acima' é o melhor álbum português de todos os tempos”. Esta frase foi proferida em publicações nas redes sociais, artigos de jornal ou conversas em esplanadas, por fãs acérrimos do músico beirão, por jornalistas e críticos especializados, por melómanos convictos. A existência de factos é impossível quando o assunto é o gosto. Factual é escrever esta outra frase: “Por Este Rio Acima” é um dos mais importantes álbuns da música feita em Portugal.
O que o torna tão especial? A música, que bebe da tradição portuguesa e de ritmos de outros mundos? As letras, onde versos como Pelo pai assassinado / Desventrado por seu filho / Que possuiu lascivo / A sua própria mãe horrorizam e mortificam, tanto quanto fascinam? O facto de ter influenciado vastas mãos cheias de músicos nacionais, alguns deles nem sequer nascidos quando “Por Este Rio Acima” foi originalmente lançado, há precisamente quarenta anos? O pedestal mitológico em que colocamos o próprio Fausto, um dos últimos sobreviventes da leva de cantautores feitos ainda no Estado Novo? Tudo isso, e talvez mais alguma coisa - nomeadamente, uma certa noção de transversalidade e contemporaneidade, capaz de levar até à Aula Magna pessoas de gerações de letras diferentes. Como facilmente, aliás, se comprovou este domingo mal se entrou no auditório.
Para alguns, foi a primeira experiência de Fausto Bordalo Dias ao vivo. Para outros, o número já não cabe na memória. Todos, sem exceção, saíram da sala lisboeta com a sensação de terem testemunhado algo de único. O mote era o 40º aniversário de “Por Este Rio Acima” mas, por força dessa maldição chamada tempo, é igualmente possível (ora-se para que não o seja, mas as orações nada podem fazer) que esta tenha sido a última vez que Fausto apresenta, ao vivo e neste formato, estas canções. O abraço e o adeus no final, o que bom ouvir as vossas palmas… entoado de forma melancólica pelo músico, deram um tom amargo à festa. Todas as festas são, aliás, amargas quando se envelhece.
Do som de uma tempestade passou-se para o de uma guitarra portuguesa. Um a um, os músicos foram tomando os seus lugares. Fausto, no final, passo lento e auxiliado, foi quem mereceu - naturalmente - a maior das ovações, e de pé, pois o respeito assim o dita. Um respeito tão grande que só quando a sua voz se começa a escutar é que os presentes sentiram que era seu dever sentar-se, como se o ato de escutar estas canções com alguma efusividade a mais fosse uma terrível ofensa para com o mestre e a mestria. Um respeito tão grande que o número de telemóveis no ar, ao contrário de outros espetáculos de outros artistas, foi reduzidíssimo. Mesmo quando acompanhava temas como ‘O Barco Vai De Saída’, o público parecia ter vergonha de sobrepor a sua voz à de Fausto, uma voz que, culpa da idade ou do microfone, por vezes desaparecia do palco.
Havia, no entanto, sempre alguém para o ajudar: os membros de uma banda coesa e exímia, onde se destacou a voz de Luanda Cozetti, uma das mais aplaudidas da noite. A maravilhosamente psicadélica ‘Porque Não Me Vês’, com Rui Júnior - que Fausto apontou como “o único em palco que participou nas gravações” de “Por Este Rio Acima” - nas tablas, cedeu lugar a ‘A Guerra É A Guerra’, que finalmente colocou alguns corpos a dançar, mas baixinho, não fossem sujar ou partir aquilo que se ia escutando. O disco foi apresentado como ditam as regras, segundo o alinhamento original, e existiu um frenesi palpável em ‘Como Um Sonho Acordado’, o coro final a dar uma demão de sangue ao que já é um tema assustador: Tens medo dos vivos / E dos mortos decepados / Pelos pés e pelas mãos / E p'lo pescoço e pelos peitos / Até ao fio do lombo…
Até final, e foram quase duas horas em que se mataram saudades ou se criaram saudades, notou-se alguma alegria durante ‘A Voar Por Cima Das Águias’ (o ritmo convidava a isso), viu-se Jorge Fernando e Francisco Pereira a transformarem ‘Olha o Fado’ em algo sublime, sentiu-se a percussão estrondosa de ‘O Cortejo Dos Penitentes’ e observou-se como ‘Navegar, Navegar’ fez o público perder, mas só momentaneamente, a sua vergonha, tendo entendido por fim que um concerto de Fausto deve conter dentro de si uma determinada noção de comunhão. A mesma ‘Navegar, Navegar’ voltaria a dar um ar de sua graça no encore, já depois da magia de ‘Lembra-me Um Sonho Lindo’ e da solenidade de ‘Quando Às Vezes Ponho Diante Dos Olhos’. Fausto, és o maior!, acabaria a gritar o seu baterista antes de os músicos abandonarem o palco. Fausto é, efetivamente o maior. O maior de todos os tempos? Fica novamente ao critério de cada um - quem o viu este fim de semana jurará a pés juntos que sim.
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