Não é por acaso que, duas décadas volvidas, as canções sem título do álbum dos parêntesis continuam bem presentes na digressão que os islandeses Sigur Rós trouxeram esta noite ao palco do Campo Pequeno, em Lisboa. “( )” é o disco em que a banda melhor encapsula aquela liberdade que sempre quis dar a quem ouve para interpretar e sentir a sua música: nenhuma das oito peças musicais tem nome oficial ou letras inteligíveis. Ouvir um disco do trio composto por Jónsi Birgisson, Georg Hólm e Kjartan Sveinsson, novamente reunido depois de este último ter resolvido sair em 2013, é como partir para uma aventura sem mapa; assistir a um concerto deles é uma experiência difícil de traduzir: não há grandes palavras para expressar algo que está incomensuravelmente mais enraizado na emoção do que naquilo que poderá ou não significar. Arriscamos até a dizer que tentar descrever a experiência ao vivo dos Sigur Rós a alguém que nunca assistiu (ou a quem não compreende, de todo, o fenómeno) é tarefa inglória. Isso só demonstra que o coletivo, agora acompanhado em palco pelo baterista Ólafur Ólafsson, continua a ser a prova viva de que a música não conhece barreiras emocionais (nem geográficas, nem linguísticas).
Eram 21h07 quando as luzes da sala, praticamente lotada, se apagaram. Com Jónsi em destaque na frente de palco, e holofotes vermelhos pulsando lá atrás, o arranque foi feito com o trio de canções que abre “( )”, entre as teclas esparsas de ‘Untitled #1 – Vaka’, secundando a voz acolhedora, sempre entre o desespero e a temperança, do cantor, o ambiente desolado com bateria ao jeito de coração arrítmico de ‘Untitled #2 – Fyrsta’ e a espiral em crescendo progressivo de ‘Untitled #3 – Samskeyti’, algures entre o registo de embalar e o despertar do amanhecer. O que se seguiu foram praticamente três horas de um transe coletivo acicatado por uma experiência sensorial-imersiva que, na verdade, parece não caber bem na denominação de “concerto”. Depois da fulgurante abertura, bastaram apenas os primeiros acordes de ‘Svefn-g-englar’, canção recuperada a 1999 que muito contribuiu para arrancar os Sigur Rós do anonimato, para que a plateia reagisse em reconhecimento efusivo. O seu rasgo portentoso, feedback transformado em música, com a voz de Jónsi a ecoar pelas entranhas da sua guitarra, permanece, até hoje, um dos melhores testemunhos de que todos os desgostos do mundo não só cabem na música celestial da banda como dão origem a algo francamente belo.
Momentos mais tarde, ainda em “Ágætis Byrjun”, a catarse percussiva de ‘Ný Batterí’, entre flashes e pingos de luz e vigorosos espasmos de corpo inteiro, surge como deixa perfeita para o grupo apresentar, banhada a dourado de pôr de sol, ‘Gold 2’, a primeira das duas canções novas, e inéditas, que escutámos esta noite. A respiração lenta e os silêncios hipnóticos de ‘Heysátan’, o dramatismo de ‘Untitled #7 – Dauðalagið’, com a voz de Jónsi a estirar-se para lá do inteligível, e o tesouro ‘Untitled #9 – Smáskifa’, recuperado ao single de ‘Untitled #1 – Vaka’ e arrancado às profundezas roucas da voz de Jónsi, encerraram o primeiro ato do concerto, aquele que segundo declarações do baixista Georg Hólm à BLITZ, é “um pouco mais intimista, um pouco mais difícil de digerir”. No ecrã gigante, as pombas que pousavam e levantavam voo de um fio branco dariam, então, lugar à palavra “intervalo” (e a uns longos dez minutos de espera). De volta, ‘Glósóli’ trouxe consigo o lado mais solar dos Sigur Rós, mas também uma intempestividade que escorre para o murro de som de ‘Untitled #6 – E-Bow’ – ao vivo, parece querer evocar, e desconcertar, o fantasma de Ian Curtis. A beleza tremeluzente de ‘Ekki Múkk’ testa, corajosamente, a capacidade do público lisboeta de aguentar as palmas até ao ponto de silêncio; a luminosidade explosiva de ‘Sæglópur’ traz ecos difusos de uns Radiohead em modo “Kid A”; ‘Gong’ e ‘Andvari’ completam o quinhão de canções recuperadas a “Takk...”, de 2005, atirando a banda para fora de palco e provocando, automaticamente, a impaciência de um público que exigia mais.
A recompensa não tardou. Depois de as teclas sinceras de ‘Gold 4’, a segunda canção nova, ter comprovado, de novo, como se tal fosse preciso, que a banda é mestre da contenção, ‘Festival’ girou a agulha para a sua faceta mais expansiva, com o andamento corrido a exigir acompanhamento da plateia, que não se faz rogada. O retorno dos admiradores, que acabaria por culminar na maior ovação da noite, conseguiu a proeza de arrancar, finalmente, Jónsi do seu mundinho. Daí até ao final, a intensidade permaneceu lá no alto, com a agressiva flashada de ‘Kveikur’, um dos momentos mais industriais do percurso grupo, e a brisa emocional de ‘Untitled #8 – Popplagið’. O abandono dos instrumentos e saída abrupta de palco dos quatro músicos parece espelhar o esgotamento emocional de um público que aguentou, estoicamente, perto de três horas de espetáculo. Assistir aos Sigur Rós ao vivo é hoje, como era há 20 anos, uma experiência de difícil digestão, mas tão recompensadora para iniciantes como para aqueles que já se habituaram há muito à inocência diabólica de uma das bandas mais especiais e enigmáticas que o mundo viu nascer.
Alinhamento:
‘Untitled #1 – Vaka’
‘Untitled #2 – Fyrsta’
‘Untitled #3 – Samskeyti’
‘Svefn-g-englar’
‘Rafmagnið búið’
‘Ný batterí’
‘Gold 2’
‘Fljótavík’
‘Heysátan’
‘Untitled #7 – Dauðalagið’
‘Smáskifa’
‘Glósóli’
‘Untitled #6 – E-Bow’
‘Ekki múkk’
‘Sæglópur’
‘Gong’
‘Andvari’
‘Gold 4’
‘Festival’
‘Kveikur’
‘Untitled #8 – Popplagið’
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