Nick Cave: “Tornei-me a personificação ambulante da perda”
Nick Cave
Rita Carmo
Ao ler os milhares de cartas que recebe, Nick Cave apercebeu-se que a tragédia que lhe aconteceu “não é uma situação extraordinária, mas sim ordinária. As circunstâncias foram difíceis, mas passei por algo que todos vivem a certa altura”. Nesta nova entrevista, o australiano reflete sobre a perda, mas também sobre o amor, lembrando como conheceu a sua mulher, Susie Bick. “Foi o culminar feliz de 20 anos de completo desastre”
Em entrevista ao jornal inglês “The Telegraph”, Nick Cave voltou a falar da forma como reagiu à morte do seu filho, Arthur, que faleceu em 2015, após cair de um penhasco. Na mesma entrevista, o australiano aborda a sua relação terapêutica com os fãs, o casamento com Susie Bick, a sua relação com Deus e ainda a dependência da heroína, já debelada.
“Não acredito que a dor vá e venha, como uma onda”, afirma Nick Cave. “Penso que nos tornamos uma personificação ambulante da perda. Para mim, tornou-se impossível ser outra coisa que não a pessoa em que me transformei devido à morte do Arthur. Tornou-se uma condição, e foi muito difícil ser outra coisa que não um pai em luto.”
Nick Cave descreve o temperamento de Arthur como oposto ao do seu irmão gémeo, Earl. “O Arthur era precoce, mas inteligente, engraçado, um miúdo maluco. Tinha uma grande energia, então quando chegava a casa da escola entrava disparado pela porta e começava às voltas à mesa, a contar tudo o que tinha acontecido. Geralmente coisas más”, recorda, entre risos. “Já o Earl ficava parado, a olhar para o Arthur… ele tinha um espaço enorme na nossa família.”
Este ano, Nick Cave viu morrer o seu filho mais velho, Jethro, em circunstâncias “complicadas” sobre as quais diz não poder falar. A correspondência que mantém com os fãs, através do site Red Hand Files, ajudou- a sentir-se útil, diz. “No fundo, responder às cartas fez-me virar a minha atenção para fora, e é isso que tenho feito desde então. Sinto que tenho algumas coisas para dizer sobre aquele assunto, pelo que posso ter alguma utilidade para o mundo, e creio que existe alguma virtude nisso.”
Ao ler os milhares de cartas que recebe, Nick Cave apercebeu-se que a tragédia que lhe aconteceu “não é uma situação extraordinária, mas sim ordinária. As circunstâncias foram difíceis, mas passei por algo que todos vivem a certa altura”, afirma, contando que muitos leitores lhe dizem sentir a presença do ente querido. “Geralmente esses sentimentos são tidos como intelectualmente desonestos, [fruto de] pensamento mágico, pura estupidez ou falta de coragem, mas muitas vezes são aquilo que arranca as pessoas da escuridão e as conduz a uma vida com mais sentido.”
Sobre a sua relação com a estilista Susie Bick, Nick Cave conta como a conheceu no primeiro desfile de moda a que assistiu, em 1997. Nos oito meses que se seguiram, Bick desapareceu da sua vida. “Fiquei arrasado. Não conseguia encontrá-la e ninguém me dizia onde ela estava. Passei por um período particularmente difícil.” Quando reapareceu na sua vida, Susie Bick deu-lhe ‘permissão’ para continuar a consumir heroína. “Ela veio a minha casa e disse: ‘amo-te, aqui estou eu, podes continuar a drogar-te, faz o que quiseres.’ E eu fiquei extremamente feliz, porque me pareceu que podia ficar com a miúda e continuar a drogar-me”.
Três semanas mais tarde, Nick Cave percebeu que essa situação não ia resultar e deu entrada, voluntariamente, numa clínica de reabilitação no estado norte-americano do Arizona. Desde então, está livre de drogas e também não bebe nem fuma. “Foi o culminar feliz de 20 anos de completo desastre, e de dez anos que foram um pesadelo de tentar parar e não conseguir, e do caos e desespero que se seguiram a esses anos”, resume.
Explicando como a morte do filho Arthur o tornou uma pessoa mais religiosa, Nick Cave, que desde jovem mostrou grande interesse pela leitura da Bíblia, voltou também a comentar a chamada cultura do cancelamento. “Reajo mal às certezas das pessoas quanto ao que está mal no mundo, e à ideia de que tens de definir uma linha nestas coisas ou ficas no lado errado da história – o que quer que isso seja.”
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