Publicado originalmente a 7 de dezembro de 2019
A história é bem conhecida e, por conter em si os ingredientes clássicos de adversidade & superação, continua a ser contada: enquanto estiveram no ativo, ou seja, até 2002, os Ornatos Violeta despertaram a curiosidade de muitos e a devoção de poucos. O seu primeiro álbum, o fervilhante "Cão!", de 1997, fez um caminho discreto e "O Monstro Precisa de Amigos", que dois anos depois lhe sucederia, seria o último que a banda do Porto viria a gravar. Visto hoje, à distância de 20 anos, ostenta laivos de disco clássico: da capa icónica ao travo melancólico, passando por um alinhamento à prova de bala, onde se encontram canções que passam de geração para geração e acertam nos pontos nevrálgicos da dor, euforia e raiva. A vida como ela é, em resumo.
A segunda vida dos Ornatos Violeta, durante muito tempo um sonho na cabeça dos fãs - sobretudo dos mais jovens, que não puderam vê-los nos anos 90, quando atraíam multidões bem menores - começou em 2012, com um surpreendente regresso aos palcos, e teve continuidade este ano, a pretexto da comemoração dos 20 anos de "O Monstro Precisa de Amigos".
Desde o primeiro regresso, Manel Cruz, Peixe, Nuno Prata, Elísio Donas e Kinörm mantiveram-se ocupados, em gostosos projetos individuais, mas da sua pena coletiva não nasceram canções novas para apresentar na digressão de 2019. Porém, isso não significa que não haja diferenças entre esta reunião e a de 2012.
Esta noite, no Campo Pequeno, a banda repetiu o formato 360º apresentado no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, sala que ajudaram a estrear com dois concertos esgotados. Quer isto dizer que, ao invés de estar numa das extremidades da arena, o palco se encontra no centro da plateia, fazendo com que, ao longo de cerca de duas horas, qualquer pessoa na sala vá ver Manel Cruz de frente (e de costas também). A maior vantagem, porém, parece-nos ser a adequação deste tipo de palco, que às vezes se assemelha a um ringue de boxe, à pujança acrescida com que as canções de "O Monstro..." se apresentam em 2019.
Em palco, dizíamos, há abraços e beijos com fartura ("A nossa amizade está melhor do que nunca", disse Manel Cruz à BLITZ, e de facto aqueles sorrisos não enganam), mas há também uma tensão salutar que resulta num som por vezes mais rock do que aquele que está traduzido em disco. Calcorreando o ringue de forma frenética e incansável, Manel Cruz canta como gente grande durante duas horas e faz desta banda uma espécie de clube de combate: catártico, físico, intenso. Mas essa raça acrescida não retira um pingo de emoção aos momentos mais ternurentos, antes os sublinha a fluorescente.
A contenda começou com 'Como Afundar', um de vários inéditos gerados para o terceiro disco dos Ornatos Violeta, nunca nascido. Da dolência épica que podia ter sido o trilho da banda depois de "O Monstro..." ao final de arrepio rock, a canção incluída no disco de raridades de 2011 abriu caminho para 'Tanque', tema de abertura do disco que este ano fez 20 anos. Aqui e logo a seguir - em 'Pára de Olhar para Mim' - torna-se evidente que esta é uma banda que aprendeu a gerir o seu património coletivo com brilhantismo. De teclados ácidos a tornar mais evidentes os paralelismos com uma das bandas de referência dos Ornatos Violeta, os Faith No More, 'Pára de Olhar para Mim' vê uma boina arremessada para a plateia (a do guitarrista Peixe), uma t-shirt a voar (a de Manel Cruz) e muitos êxtases partilhados, em cima de palco e do lado de cá. A emoção repetir-se-ia mais à frente, com 'O.M.E.M.', da mesma safra de canções efervescentes, e o Campo Pequeno transformado numa matilha de diabretes à solta (e aos saltos), ou na despedida antes do encore, com o incontornável punk-fado de 'Dia Mau' (a devida vénia ao baterista Kinörm, um dos homens que mais se divertem em palco e de cuja imaginação surgiu a designação de punk-fado, o nome Ornatos Violeta e até mesmo o de Foge Foge Bandido, uma das encarnações de Manel Cruz).
Pelo meio, as palmas do público foram estrelinhas no firmamento de 'Para Nunca Mais Mentir', ladainha & manifesto de intenções de um letrista sempre próximo das questões da ética, e em 'Ouvi Dizer', que já dispensa a comparência vocal de Manel Cruz, a banda provou ter aprendido a habitar uma canção porventura demasiado visitada, guarnecendo-a com uma guitarra mais pesada e acompanhando o entusiasmo do público com luzes rubras de paixão.
Foi talvez com 'Há-de Encarnar', porém, que o espetáculo ganhou uma intensidade diferente. Outro inédito da era que mediou "Cão!" e "O Monstro...", o majestoso tema, dono de uma das letras mais dramáticas da banda, mostrou Manel Cruz a dar corpo & alma ao manifesto. O fogo alastra a 'O.M.E.M' e com 'Chaga' chovem arrepios elétricos no Campo Pequeno. Desde sempre uma das canções mais incisivas dos Ornatos Violeta, o tema que em tempos nasceu de um riff de Peixe gerou uma inacreditável correnteza de energia entre banda e público e foi um dos momentos mais celebrados de um encontro que começava aqui a ganhar um novo fôlego.
Quem também envelheceu lindamente, nas últimas duas décadas, foram canções mais buriladas como 'Coisas', com a sua comovente prece final ("eu estou bem, quase tão bem...") a ser prolongada pela banda, como todas as coisas boas que não queremos que acabem nunca. E, ainda em pleno estado de graça, 'Deixa Morrer' espalhou ondas de carinho pela sala, servindo de símbolo a tudo o que esta noite (e este ano) os Ornatos Violeta nos deram. É (aparentemente) simples, é de certa forma meta (deixar o amor morrer é algo que esta banda já fez), é emoção pura e é também, provavelmente, uma doce ilusão. "Acendeu-se a luz, estão vivos outra vez", festeja-se, de luzes acesas, com a certeza de que novo fim está por minutos. Agarrando na mão da banda, o público não deixa, de todo, a canção morrer e, entoando o seu refrão já depois de se calarem os instrumentos, é responsável por um momento lindíssimo, que emocionou os próprios músicos.
Até ao encore, haveria ainda tempo para mais um precioso inédito - 'Devagar', cuja melancolia algo mediterrânica havia de se derramar, findos os Ornatos, pela carreira de Manel Cruz enquanto Bandido -, por uma recordação punk de quando estes cinco senhores eram "umas crianças" ('Dias de Fé') e ainda por 'Capitão Romance'. Não nos apercebemos do momento exato em que esta canção se transformou num hino, mas ainda bem que assim sucedeu: ver cabeças a ondular docemente, da plateia até aos camarotes, na ânsia de berrar um refrão que é tanto lamento como libertação, é talvez o quadrinho mais português que levaremos desta noite.
E por falar em quadrinhos, abençoado encore aquele que trouxe a banda de volta ao ringue da vida para uma saborosa viagem ao passado: primeiro, com a canção-biombo 'Tempo de Nascer', escrita entre álbuns, para a compilação "Tejo Beat" e melhor indicador das alturas que os rapazes ainda viriam a atingir, e depois um miminho valente para os fãs de "Cão!", um álbum em que a escrita "narrativa e delirante" de Manel Cruz, para citarmos Gonçalo Frota no Ípsilon, transforma cada canção numa vinheta de banda desenhada. 'A Dama do Sinal', tão Porto anos 90 que faz doer a saudade, a maravilha-mirim de 'Chuva' (Peixe, que este ano lançou um belíssimo álbum com Frankie Chavez, a esboçar um pequeno blues) e 'Débil Mental', não tocada há muito mas incandescente como sempre, provaram que o "Cão!" continua a ferrar forte e bonito.
Curiosamente, um dos inéditos mais acelerados, 'Pára-me Agora', foi dedicado aos Da Weasel que, nesta altura de "re-re-revivalismos" (palavras do nosso anfitrião), se reunirão para o ano. E a verdade é que, tanto em 'Débil Mental' como em 'Punk Moda Funk', também revisitada com estrondo esta noite, a verve da estreia dos Ornatos, servida pela entrega ágil de Manel Cruz, não andava longe de um rap mesclado de palavras cruzadas.
Sem convidados nem efeitos especiais, mas com muitas mudas de roupa (a t-shirt de Manel Cruz, que pouco tempo se aguenta no seu tronco esguio, ou a camisola do Boavista com que Kinörm se despedirá), o concerto seguiu sempre em crescendo, com picos de emoção nem sempre previsíveis. Em 'Fim da Canção', por exemplo, cosida apenas a linhas de guitarra acústica e baixo, a forma como os fãs mais aguerridos se entregam à repetição da deixa "falo de um amar para dentro, que é virar a dor para dentro" faz-nos pensar que a vida também é isto, e que a vida - mal ou bem - toca a todos.
À BLITZ, Manel Cruz confessou recentemente que, nos últimos tempos, aprendeu a valorizar sobretudo a perceção de que o seu público está a conseguir "mergulhar" no momento. Nesta noite, houve quem saísse do Campo Pequeno encharcado de emoção, mas isso só acontece porque, em cima do palco-ringue, esteve um pequeno monstro de cinco cabeças, falível e deliciosamente humano. Nas suas veias pulsa ainda o sangue do brilhantismo & da bravura e torna-se comovente, sobretudo para quem os acompanha há 20 anos, perceber que, como se cantaria em 'Há-de Encarnar', os sonhos podem realmente não ter fim; pelo menos, não antes de se concretizarem.
O "até sempre" dos Ornatos Violeta em 2019 fez-se ao som de 'Raquel', mais uma jóia da coleção "Cão!", com menção a uma menina a quem a canção deu nome, e o antigo hino da RTP, que fecha o primeiro álbum da banda. Dificilmente poderia haver despedida mais acertada para uma noite cheia de nostagia, humor e amor. Era uma vez cinco rapazes do Porto que, quase sem quererem, agarraram mesmo o sonho lindo que viram.
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