101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Um Grande, Grande Amor’, José Cid (1980)
Em 1976, foi disponibilizado a Nelson Motta, de graça, um espaço no recém-inaugurado Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro. O espaço já estava vendido ao futuro Teatro dos Quatro e a ‘borla’ só duraria 4 meses – tempo mais do que suficiente para o produtor musical instalar ali a Frenetic Dancin’ Days, a discoteca carioca mais badalada na época. Uma das atrações, para além da disco sound, eram as garçonetes – que, para além da pose sensual e ousada, subiam ao palco no final da noite para cantar três ou quatro músicas. O sucesso foi tão retumbante que Nelson Motta e Roberto Carvalho (marido de Rita Lee) tiveram de criar mais repertório para aquelas ‘garotas’. Pouco depois assinaram com a Warner e passaram a chamar-se Frenéticas (nome mais que adequado). Em 1978, a Globo estava a começar a produzir uma nova novela (com um ambiente disco) e convidou Nelson Motta para criar a trilha sonora e sugerir um nome definitivo: quer a novela quer a canção de abertura chamar-se-iam Dancin’ Days (que outro nome, pois então?). As intérpretes (quem mais?) seriam as Frenéticas e a canção passou (também em Portugal) a popularizar expressões do seu refrão como ‘caia na gandaia’ e ‘livre, leve e solta’.
Fez sentido, por isso, que as Frenéticas fossem a atração do Festival RTP da Canção de 1980; afinal, a novela (exibida em Portugal entre Novembro de 1979 e o verão de 1980) era um êxito, com direito até a uma revista exclusiva e a muitas manchetes na TV Guia (ainda que como ‘Dias Dançantes’, num tempo em que o inglês ainda não estava democratizado). Queria-se um festival de música, que fosse espampanante e tivesse cor. Sobretudo cor: nesse dia, eram inauguradas as emissões a cores e assentava bem o look brilhante das Frenéticas e a canção exultante de José Cid, dizendo Adeus ao preto e branco em várias línguas.
Tinha havido alguma pressão (até política) para que ‘Um Grande, Grande Amor’ fosse a vencedora da edição do Festival daquele ano. José Cid levaria à Holanda uma canção de estrondo, com um refrão de estrondo, uma voz portentosa e uma orquestração pomposa. José Cid levaria uma canção para ganhar; finalmente para ganhar. Portugal já conseguira, oito anos antes, posicionar a ‘Festa da Vida’ de Carlos Mendes em 7.º lugar – mas desta vez é que era. Tivera de passar as eliminatórias em Portugal, ultrapassando as Doce por larga margem, e deu a Portugal uma expectativa maior. Em Haia, liderava as apostas e era mesmo a preferida daquele que viria a vencer nesse ano – o irlandês Johnny Logan, o senhor Eurovisão, que ganharia por 3 vezes o certame (a palavra ‘certame’ não demoraria muito tempo a ser substituída por outras menos engravatadas).
Em pouco mais de um mês que a canção voou entre Portugal e a Holanda, ‘Um Grande, Grande Amor’ passou a ensinar Portugal a dizer ‘Adeus’ e ‘Meu Amor’ em várias línguas. O refrão era de estalo, de facto, e José Cid decidiu, em Haia, começar por Addio, adieu, aufwiedersehen, goodbye / Amore, amour, meine liebe, love of my life – invertendo a narrativa da canção original. Para mostrar ao que vinha. No final, antes de a canção terminar, saiu do piano e pespegou-se de microfone em frente ao público – que se embalara por aquela melodia orelhuda. Ficou em sétimo lugar, a repetir o melhor resultado de sempre (de Carlos Mendes). Victor Cunha Rego, o PCA da RTP, terá respirado de alívio – afinal, caso José Cid tivesse ganho, à televisão nacional caberia organizar a gala no ano seguinte, o que seria uma despesa de monta.
José Cid era um homem de festivais. Já tinha participado em três edições (com cinco canções) e haveria de por lá passar mais de uma dezena de vezes – como intérprete ou compositor. Mas José Cid era bem mais do que um músico de festivais. Tinha sido o líder do Quarteto 1111, dos Green Windows e, em nome próprio, compusera um dos álbuns mais históricos de sempre do rock progressivo. Haveria de cantar fado, blues, jazz ou música popular. Compusera ‘A Lenda de El-Rei D. Sebastião’, um álbum dedicado a Federico García Lorca e outras canções a grandes poetas portugueses e do mundo. Mas compôs também ‘Como o macaco gosta de banana’ ou ‘A Pouco e Pouco’, esta última uma das que o público mais anseia pelos versos finais (‘faz-me favas com chouriço, o meu prato favorito’). Cai-lhe bem a provocação. Alimenta a provocação. Passou a ser a sua insígnia, ainda que não a tenha forçado. Cai-lhe bem a frase que adotou como sua e que ostenta estampada em t-shirts: ‘Coerente era a minha avó’. José Cid não é coerente e essa incoerência fá-lo representar as suas muitas géneses: a sua pluralidade, a sua excentricidade e o seu exotismo.
Aos 80 anos, continua a dar concertos de três horas, em dias sucessivos. Se conseguisse, se o público quisesse, não se levantaria do seu piano. Continuaria a cantar em loop. Como uma dádiva. Como um agradecimento. José Cid gostaria de ser o último a sair da sala. A apagar a luz. Portugal deverá estar grato por ter alguém tão não consensual. Tão desbragado e emotivo. Tão ácido e tão doce. Tão popular e tão polémico. José Cid terá vivido 10.000 anos pela música e quis partilhar o que sabia com Portugal numa carreira polémica, sólida e longa. Afinal, a arte vive de estranheza – e José Cid, enquanto músico e enquanto personagem, materializa aquilo que deve ser uma forma estimulante de fugir à rotina conservadora e de a surpreender.
E as palavras que eu uso em refrão
Fazem parte da mesma canção
Que ecoa nas galáxias da minha ilusão
Ouvir também: ‘Volkswagen Blue’ (1971). Em 1970, os tropicalistas Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram por Portugal a caminho do seu exílio em Londres. José Cid abordou-os no Estoril e convidou-os a visitar o estúdio (garagem) na Alapraia, onde o Quarteto 1111 ensaiava. Seguiu-se uma noite animada e uma jam session entre todos. No final, Gilberto Gil ofereceu esta canção a José Cid, que a incluiu no ano seguinte no seu primeiro álbum a solo.
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