24 maio 2014 0:07
O editor de Economia do jornal britânico afirma que erros detetados nos dados do livro "O Capital no século XXI" colocam em causa a tendência para o aumento da desigualdade depois de 1970. A parcela no rendimento por parte dos muito ricos teria permanecido estável nos últimos 30 a 40 anos.
24 maio 2014 0:07
Duas conclusões importantes de Thomas Piketty, no seu livro "O Capital no século XXI", foram hoje colocadas em causa no influente jornal britânico "Financial Times" (FT). A primeira refere que, sobretudo a partir dos anos 1980, se verifica, de novo, uma subida da riqueza detida pelo topo da pirâmide social no rendimento nacional em diversas economias desenvolvidas. A segunda que essa desigualdade é mais acentuada nos Estados Unidos do que na Europa. O FT adianta que não são válidas. O Expresso entrevistou Piketty esta semana e publica uma entrevista na edição impressa de 23 de maio.
Uma investigação realizada por Chris Giles, editor de Economia do FT, revelou muitas entradas de dados nas folhas de cálculo não explicadas, o uso não explicado de diferentes períodos de tempo, alterações e erros na transcrição de dados a partir das fontes originais, e médias entre países obtidas por métodos questionáveis que baseiam alguns dos gráficos chave de um capítulo do livro "O Capital no século XXI" de Thomas Piketty.
O editor do FT pôde realizar esta avaliação pois Piketty colocou online os dados usados para o livro desde a sua publicação em francês no ano passado, bem como um apêndice técnico desenvolvido, o que pode ser consultado em http://piketty.pse.ens.fr/capital21c, onde se pode encontrar um ficheiro zipado com todo o material.
Giles alega, num artigo que publicou ao final da tarde de sexta-feira (23 de maio) na secção "Global Economy" do FT, que "[os erros] são suficientemente sérios para colocar em causa a afirmação do professor Piketty de que a parcela de riqueza nas mãos dos mais ricos da sociedade tem vindo a crescer" depois de 1970. "Quando procurei corrigir estes aparentes erros, surgiu um quadro bem diferente sobre a desigualdade", diz Giles em "Piketty findings undercut by errors". "O resultado combinado de todos estes problemas conduz [no livro de Piketty] a um aumento artificial da concentração da riqueza nos mais ricos nos últimos 50 anos", afirma.
Com as correções feitas por Giles, a tendência para um aumento da desigualdade na riqueza sobretudo depois de 1980 "desaparece". Giles desenvolveu, depois, o tema noutro artigo mais extenso intitulado "Data Problems with Capital in the 21st Century" publicado no blogue "Money Supply" do FT.
O ponto de divergência: concentração aumentou ou mantém-se estável?
O editor de Economia do FT iniciou a investigação por ter tropeçado numa diferença entre os dados oficiais britânicos e os referidos por Piketty quando pesquisava para um artigo sobre a distribuição de riqueza no Reino Unido. O editor do FT foi analisar ao detalhe os dados do capítulo 10 ("Desigualdade na propriedade do capital") na parte III do livro do professor francês, verificando os tais problemas com dados para quatro países-chave da análise - França, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos.
No caso do Reino Unido, Giles encontra as maiores discrepâncias entre dados oficiais e os números de Piketty a partir de 1980. "O nível de concentração de riqueza na Grã-Bretanha em 1980, 1990, 2000 e 2010 é significativamente mais baixo do que reporta o professor Piketty", sublinha o FT, e, nesse sentido, o que se verifica é uma trajetória plana.
Resumindo sobre a Europa, Giles alega que a média que obtém - reduzindo o peso da Suécia, refletindo a menor população deste país em relação aos outros dois - não é tão elevada no início do século XX como Piketty alega. Giles prefere o uso de uma média ponderada em vez de uma média aritmética. E que os dados que coligiu sobre o Reino Unido nos últimos anos não apontam para uma tendência de subida. No caso dos EUA, Giles conclui também que a evolução entre 1960 e 2010 revela um aumento muito ligeiro da parcela de riqueza detida pelo 1% do topo (subiu de 33,4% para 34,6%), citando dados de Richard Wolff, a que Piketty também recorreu.
No caso da Europa é ainda nítido que para Piketty a descida da fatia do topo no rendimento iniciada em 1910 termina nos anos 1970, enquanto na simulação de Giles só termina em 1990 para o segmento dos 10% e em 1980 para o segmento de 1%.
A conclusão central de Giles é que a curva da riqueza detida pelo topo não aumentou, mas manteve-se praticamente estável nos últimos 30 a 40 anos quer na Europa como nos EUA. A preocupação da crítica do FT é este passado recente - o pós-1980 - e não o passado mais distante do século XIX e do que ocorreu na primeira metade do século XX sobretudo na Europa, onde as conclusões globais de Piketty "parecem estar certas".
A divergência a partir de 1980 fica clara comparando dois gráficos sobre a evolução dos segmentos dos 10% mais ricos e do 1% na Europa e nos EUA. O publicado por Piketty na página 349 do seu livro e o publicado por Giles no final do artigo "Data Problems" - no primeiro caso há uma trajetória de subida que começa a ser nítida entre 1980 e 2010; no segundo caso a evolução mantém-se plana.
As observações de Chris Giles e de alguns comentadores internacionais alegam alguma similitude entre estas críticas aos dados de Piketty e a crítica no ano passado aos erros de Excel e metodológicos encontrados por uma equipa da Universidade de Massachusetts, Amherst, num artigo de Carmen Reinhart e Ken Rogoff, datado de maio de 2010, sobre a questão do limiar vermelho dos 90% da dívida pública no PIB. Uma polémica que o Expresso então acompanhou.
A resposta de Piketty
O FT publicou uma resposta de Piketty às críticas de Giles, em que o professor francês refere ter realizado "alguns ajustamentos" às fontes originais de dados em bruto "no sentido de as tornar mais homogéneas ao longo do tempo e entre países".
Alega, ainda, que ficaria "muito surpreendido se alguma das conclusões substantivas sobre a evolução de longo prazo das distribuições da riqueza fossem muito afetadas" por melhorias na recolha de dados e nas estimativas cobrindo mais países que o projeto World Top Incomes Database, criado por Piketty com outros colegas, vier a fornecer. No entanto, o professor francês não analisa caso a caso as críticas de Chris Giles, mas desafia o FT a publicar estatísticas e rankings sobre a riqueza, material que ele analisará, ficando muito satisfeito se mudar de opinião. Conclui com ironia: "Mantenham-me informado".
O autor de o "Capital no século XXI" refere ainda que as estimativas da concentração de riqueza por ele apresentadas pecarão até provavelmente por defeito. Piketty refere no livro uma investigação de Gabriel Zucman, publicada na revista científica "Quarterly Journal of Economics", no ano passado, em que se concluía que uma boa parte da riqueza detida pelo topo não é reportada nas estatísticas nacionais pois se encontra em offshores, parcela que deve representar cerca de 10% do PIB mundial ou 7 a 8% dos ativos líquidos financeiros globais.