ARQUIVO Escolhas Expresso

Critica de música de 29 de Agosto a 4 de Setembro

28 agosto 2009 10:30

28 agosto 2009 10:30

Depois da lusofobia 

Clássicos de sempre para dançar num coreto, num casino, num hotel ou num restaurante perto de si. O real combo lisbonense é a primeira falsa "fifties dance band" portuguesa.

Quando, em 1989, os Tina & The Top Ten se apresentaram como "the first all portuguese fake american rock'n'roll band", o caldo de cultura de então na pop-rock portuguesa possuía o equilíbrio de microorganismos exactamente adequado para que o gesto de João Paulo Feliciano (aliás, Dr. Top), Tina Costa, Johnny "Scratch" Money, Captain M. D., Lee "Beaty" Deasy, Cosmic Rita e Plastic Mimi pudesse ser facilmente interpretado enquanto acto de ironia arty, um scherzo conceptual em torno das velhas categorias do 'autêntico' e do 'falso', encenado, de princípio a fim, como se, por um golpe de magia, num universo alternativo, os Sonic Youth -com quem, para adensar a trama do argumento, os T&TTT viriam a estreitar relações e a actuar conjuntamente, em 1993, no Campo Pequeno, em Lisboa - tivessem nascido para o mundo não em Nova Iorque mas algures entre Lisboa e as Caldas da Rainha. E uma das razões porque, nessa altura, não existiriam muitas dúvidas acerca do sentido estético da banda era o facto de, à época - dos GNR aos Mler Ife Dada, dos Rádio Macau aos Pop Dell'Arte -, ser absolutamente insólito pretender simular-se uma identidade pop com registo de nacionalidade diferente daquele que o BI exibia. Nada de extraordinário, afinal: das cantigas de amigo medievais ao fado, ao amarrotado nacional-cançonetismo ou à geração imediatamente anterior dos cantautores como José Afonso, Sérgio Godinho ou José Mário Branco, a norma 'espontânea' (em todas as suas infinitas variações e contaminações) sempre foi a de, com maior ou menor dose de tempero patrioteiro, se compor e interpretar música portuguesa e em português. É talvez por isso que soa um pouco bizarra alguma perplexidade actual perante a inevitabilidade de, após o curto interregno de domínio anglófono iniciado pelos Silence 4 em meados da década de 90, a pop lusa - essencialmente, através das independentes FlorCaveira e Amor Fúria, mas não exclusivamente - ter voltado a proferir frases como "beijas como uma freira" em vez de portentosos absurdos do género "I will build my world, I will sing my songs, I will keep my helmet on". E duplamente interessante é também, neste preciso instante, darmos com o regresso de João Paulo Feliciano, desta vez ao leme do Real Combo Lisbonense.

O manifesto/declaração de princípios (com contextualização histórica incluída: "Num mundo em transformação a um ritmo cada vez mais acelerado, corremos o risco de deixar, irrecuperavelmente, para trás muitas marcas, objectos e tradições da maior importância para a preservação da nossa identidade. Na música, uma das tradições que lamentavelmente se perdeu foi a das orquestras e conjuntos que, em meados do século XX, animavam os casinos, hotéis, bares e restaurantes das principais metrópoles ocidentais. Lisboa não era excepção - apresentava, nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, uma cena viva de espaços dedicados ao convívio e à dança") não podia ser mais sério, reivindicando-se dos "clássicos de sempre e pérolas perdidas da música portuguesa", das "tradições da canção ligeira e romântica", dos "sons e ritmos oriundos da América do Sul", do "twist, (d)o yé-yé e (d)o rock'n'roll". E, sem se rir, João Paulo (Hammond, piano, guitarra), Ana Brandão (voz), Bernardo Barata (baixo), Ian Mucznik (voz, guitarra, percussões), João Leitão (guitarra), João Pinheiro (bateria), Márcia Santos (voz, percussões), Mário Feliciano (Farfisa, voz), Rui Alves (percussões, voz), Sérgio Costa (piano, piano eléctrico, flauta, saxofone) e - embora não no disco - Tomás Pimentel (trompete, fliscorne), numa atitude "congregadora, transgeracional, transsocial e transcultural", apelam a que "novos e menos novos, ricos, pobres e remediados", dançando, participem da "recuperação de algo vital, de manifesto interesse, que se perdeu nessa corrida desenfreada do progresso que tudo atropela e tudo faz esquecer". Traduzindo: aquilo que, em versão caricatural, Os Tornados, de "Twist do Contrabando" (ed. Arthouse/Valentim de Carvalho), ensaiam e os OqueStrada, de "Tasca Beat", cinematizam e gloriosamente baralham, o Real Combo Lisbonense, assumindo a pose de "first all portuguese fake fifties dance band", junta as pontas soltas do imenso baú de tesouros que as edições "Portugal Deluxe" começaram a revelar (e que, no plano internacional, a monumental enciclopédia "Ultra Lounge" arrancou das trevas), puxa o lustro a meia dúzia de suaves frivolidades de Eugénio Pepe, Frederico Valério, Artur Ribeiro, Carlos Canelhas, Byron Gay e Mário Simões (o insano surrealismo de casino de 'A Borracha do Rocha') e, tão naturalmente como quem, todos os dias, tropeça em Thurston Moore à porta da tabacaria, projecta-as como novas para o enorme coreto do arraial pós-neo-alter-moderno do admirável mundo velho. João Lisboa

Real Combo Lisbonense

Optimus/Compact

Dolores Duran

Biscoito Fino

Nasce o mito entre o que se sabe, o que se supõe e o que se deseja que se manifeste real. E não haverá terreno mais favorável ao seu desenvolvimento que o da Música Popular Brasileira. Porque, lá está, lhe é por vezes contrária a marcha do tempo. Basta relembrar as mortes de Elis Regina aos 37 anos, de Maysa aos 41, de Sylvia Telles aos 32 ou de Dolores Duran aos 29 - cada uma à sua maneira responsável pela criação de um definitivo paradigma de interpretação no feminino, mas apenas Dolores deixada, em 1959, às portas de um novo mundo. Ela que em 'Estrada do Sol', composta com Tom Jobim, parecia até adivinhar que a bossa nova se escondia na próxima curva. Mas essa é na sua memória uma excepção: Duran foi sempre relembrada como a humilde menina da rádio que se profissionalizou aos 12 anos, se estreou na Boate Vogue aos 16 e acabou a compor existencialistas clássicos da 'dor de cotovelo' como 'Se É por Falta de Adeus', 'Solidão', 'Por Causa de Você' ou 'A Noite do Meu Bem'. O que, não deixando de ser verdade, é ingrato. Porque não escapa à tragédia do samba-canção fatalmente derramado sobre mau amor e pior bebida e trai um momento de invulgar pluralidade estética marcado pelo jazz nocturno em bares como Drink, Little Club ou Baccarat, por dezenas de LP instrumentais com indicações como "para dançar" ou "para animar sua festa" e em que tudo era "em HI-FI". Vinda desse período, a música neste CD - registada informalmente entre amigos - é tão importante quanto a que João Gilberto gravou em 1958 em casa de Chico Pereira (e este ano publicada no blogue Toque-Musicall). E revela uma cantora em pleno domínio da sua arte, deixando-se ir por 'Cheek to Cheek', 'Over the Rainbow' ou 'Makin' Whoopee' até por fim e para sempre se perder dentro das suas canções preferidas. João Santos

Lagos em Lisboa

O Afrobeat tardou a ter expressão prática em portugal, mas a espera valeu a pena.

Só faltava, mesmo, Portugal. E não será caso para dizer que se saia mal. Ou não se começasse logo por sublinhar que não é outra a pátria desta aventura. A morte de Fela Kuti, em 1997, mudou tudo. Porque a reposição exaustiva dessa obra única à qual nunca se concedera a devida atenção ofereceu, de bandeja, a um mundo sem ideias o estímulo para a reabertura da estrada do prazer. De Antibalas Afrobeat Orchestra (Nova Iorque) a Jimi Tenor & Kabu Kabu (Lahti), provas não faltaram do ingresso de uma cultura pop fatigada da matriz browniana numa nova era de prosperidade merecedora - pela dimensão do fenómeno - do epíteto 'one planet under a groove'. E, porque só por indesculpável distracção ou por legítima indiferença não havia esta vaga de adquirir por cá igual expressão prática, seria uma questão de tempo (bastante, na verdade, já que se trata de algo de mais complexo que programar uma caixa de ritmos) até que o número de activistas suficiente para formar uma orquestra se dispusesse a superar a condição de entusiasta da causa do afrobeat.

Que valeu a pena a espera será o mínimo que Cacique'97 merece 'ouvir'. Primeiro, por essa certificação do lugar de origem: se já havia razões para saudar a primazia concedida ao idioma português numa realidade orquestral de navegação complexa, maior louvor justifica a inteligência da escolha para faixa de abertura de uma peça do estilista que melhor cruzou o legado cultural português e a matriz do modernismo africano -'Jorge de Capadócia', de Jorge Ben, autor, aliás, do sintomático "África Brasil". Depois, pelo misto de energia criativa e de sabedoria musical do colectivo lisboeta: se o modelo orquestral cultivado por Fela sempre apresentou - como qualquer sistema estético cuja auto-suficiência resida na optimização da respectiva matéria-prima - o embaraço de permitir escassa margem de manobra ao visitante, redobrada admiração causa o engenho aqui revelado para a introdução de nuances cromáticas e atmosféricas e para a definição de momentos de estudo do tempo e do espaço. Já da reprodução exacta da complexa dinâmica de tão melindrosa variedade de funk se dirá que ela própria constitui a razão de ser da vinda a terreiro de Milton Gulli, Marcos Alves, João Gomes e companhia. Ricardo Saló

Cacique 97

Footmovin'/Sóhiphop

Lucky 7s

Clean Feed/Trem Azul

Desalojados pelo Katrina, Jeff Albert, Quin Kirchner e Matthew Golombisky encontraram abrigo em Chicago. Em 2006, reuniram-se com músicos locais, Jeb Bishop, Jason Adasiewicz, Josh Berman e Keefe Jackson, e reeditaram, 80 anos depois, o espírito dos New Orleans Rhythm Kings. Cumprida, logo nesse ano, a prova de vida do primeiro disco, "Farragut", ficaram livres para aprofundar as possibilidades da música (resta um comovente lamento de Bishop, 'Afterwards'). Grupo de dois trombonistas, Bishop e Albert, longe do registo 'Jay & Kai', funciona como o ponto de encontro das brass bands com o lado 'alegre' do free. Improvisação livre, funk de baixo e bateria, um vibrafone a colorir, rock (a primeira metade de 'The Dan Hang', com Bishop na guitarra, é um dos grandes temas free-Tortoise do ano), Sun Ra e swing. Como diria Tommy Dorsey: 'New Orleans stomping at Chicago'. Rui Tentúgal

Jesús Santandreu

Fresh Sound New Talent/Mbari

Eis um bom saxofonista valenciano, muito ligado ao jazz português. As primeiras notícias dele tivemo-las relacionadas com Zé Eduardo, que, julgo, deve ser um dos responsáveis do florescimento dos talentos de Santandreu. Neste CD o saxofonista tenor realiza uma obra consistente e com a força expressiva a que sempre nos habituou. Não se vai dizer que é um original do jazz, antes deve-se referir a solidez do seu fraseado, claro que muito inspirado em John Coltrane (tão poucos saxofonistas o não são) e, igualmente, a clareza das suas composições, ou melhor os veículos para as suas improvisações. "Sound Colors", para além do fogo que o saxofonista imprime à sua música, contém o contributo duma secção rítmica atenta, formada por jovens músicos, dos quais o mais conhecido é Nelson Cascais. Os outros, o pianista Albert Palau e o baterista Iago Fernández, revelam dominar a linguagem do jazz, e estão aptos para contribuir para os conceitos musicais de Santandreu. Das composições apresentadas, parece-me que é em 'Montecristo' que ocorre a melhor inspiração e concentração dos músicos. Jazz derivativo de Coltrane e do seu quarteto, mas que importa, este é o campo de expressão de músicos que se dedicam de corpo e alma à causa. Raul Vaz Bernardo

Alain Planès (piano)

Harmonia Mundi

Na sua primeira viagem a Inglaterra, Haydn parece não ter composto peças para o piano, exceptuando o "Trio Hob.XV:32". Já em termos de composição de trios com piano e de sonatas para piano, foi muito frutuosa a sua segunda deslocação a Inglaterra. Alain Planès grava aqui quatro sonatas (58, 59, 60 e 62), as derradeiras de Haydn, duas delas (60 e 62) estreadas no pianoforte por Therese Jansen-Bartolozzi, uma intérprete alemã que foi aluna de Muzio Clementi e que, no final do século XVIII, era aclamada em Londres pelas suas interpretações virtuosísticas. Obras ambiciosas e de grande exigência pelas suas características técnicas, intensamente expressivas, por vezes classificadas como 'beethovenianas' pelas suas muitas inovações, as últimas sonatas têm inícios tempestuosos. A nº 60 tem um allegro épico e vai sofrendo metamorfoses que levam a um abismo de tensão quase insustentável pouco antes de se entrar no adagio. Haydn é inesgotável e nunca envelhecerá. Na esteira do 'canto' brendeliano, o pianista francês ilumina peças de carácter profético que anunciam o século XIX. Ana Rocha