ARQUIVO Escolhas Expresso

Critica de música de 23 a 29 de Janeiro de 2010

21 janeiro 2010 19:00

21 janeiro 2010 19:00

Coisas poucas e boas 

Stephin Merritt em registo antiépico e miniatural.

Não tínhamos reparado mas, aparentemente, nos domínios da canção tal como Stephin Merritt a pratica, estava em curso uma trilogia. Aliás, uma no synth trilogy. Após o trimonumental "69 Love Songs" (1999), ter-se-á alojado na cabeça do diminuto génio uma ideia de - com modulações diversas - declinar a antiquíssima pequena forma de words & music sem recorrer às maquinetas de teclados portáteis, das quais, tanto nos Magnetic Fields como nos Gothic Archies, Future Bible Heroes ou The 6ths, ele fizera generoso uso. Tudo terá começado, sorrateiramente, com "i" (2004), um belo tomo do cânone-Merritt que, não anunciando a coisa como bíblica separação de águas, varria os sintetizadores para baixo do tapete. "Distortion", de 2008, passou só como exercício de estilo dedicado a submeter o requintado songwriting à trituradora sonora que os Jesus & Mary Chain haviam convertido ao dogma-pop em "Psychocandy". É, agora, com "Realism", que ele revela o objectivo último da conspiração estética: "Pensei em 'Distortion' e 'Realism' como um par de álbuns complementares. Quis que um se chamasse 'True' e, o outro, 'False'. Mas nunca consegui decidir qual seria o verdadeiro e o falso. Ambos têm a ver com a noção de verdade e falsidade no que respeita à gravação e à música. Não no que se relaciona com os textos mas com a produção. Distortion foi tão longe quanto era possível na direcção de um noise-pop estilizado, o que é, possivelmente, o limite da estilização do rock, antes de se transformar noutra coisa qualquer. Realism é folk, apesar de nunca ter tido muita paciência para o folk. Não aturo o som de uma guitarra acústica mais do que três minutos de cada vez". Os modelos foram, então, o variety folk, mais ou menos psicadélico, de Judy Collins e Judy Henske, "sem nenhuma ideia do que virá a seguir, como eu gosto numa programação de rádio. Sem grandes proclamações. Tenho dificuldade em ouvir Beethoven. Prefiro coisas pequenas, subtis, nada de épicos e obras-primas". 'Realism' é isso mesmo: ínfimos momentos de magnífica maldade ("I want you crawling back to me, down on your knees, like an appendectomy sans anaesthesia" ou "I could say I love you, that would be a bore, maybe in a font you've never seen before") colados a miniaturas esqueleticamente acústicas de ukulele, guitarra harpa, tuba, dulcimers, piano de brinquedo, banjo, bandolim, cordas de câmara e outras falsas ingenuidades avulsas, de salão de baile pobre e, educada e perversamente, à beira do abismo. Coisas poucas e boas. João Lisboa

The Magnetic Fields

Nonesuch/Warner

Beach House

Bella Union/Nuevos Medios

Alex Scally e Victoria Legrand, aka Beach House, têm óptima imprensa. Não falta quem esteja disposto a assegurar que eles são uma das melhores coisinhas que aconteceram à pop desde que Elvis Presley começou a ganhar peso. E, de facto, não é difícil encontrar encanto nestas canções redondas e leves como vapor de água. O problema, porém, é que tudo aquilo que é bom na música dos Beach House já foi muito melhor nas diversas fontes onde eles decidiram ir beber. As harmonias vocais, as guitarras circulares e à beira da liquefacção, a atmosfera suavemente hipnótica, a linearidade melódica, germinaram em berços de tão maior nobreza como os dos Beach Boys, Mazzy Star, Velvet Underground, Big Star, Zombies, Talk Talk, até o dos Beatles, quando Lennon e McCartney tinham os respectivos alinhamentos astrais em consonância particularmente favorável. Alex e a sobrinha de Michel Legrand são alunos dotados, estudiosos e aplicados, mas não é fácil imaginar que, algum dia, venham a ser capazes de outra coisa que não assinar o ponto no livro dos mestres. "Teen Dream", no próprio título, acaba por ser desarmantemente sincero: a atitude de emulação é genuinamente adolescente. Eles é que já não o são. J.L.

Tiago Sousa & João Correia

LP Humming Conch

Talvez não saibam para onde vão. E que seja essa a razão da insónia. Quem oiça este LP não irá passar - por bons ou maus motivos - a noite em claro. Mas também se duvida que fique devidamente esclarecido. Mais certo será que não dê por mal empregue o tempo gasto ao som do duo. Porque nem sempre a música vive da definição de rumo. E, por vezes, alimenta-se, mesmo, da sua ausência. Ou seja: pode fazer da própria indagação sobre a matéria o ponto crucial da ordem de trabalhos. E, se - a juntar a tal pressuposto - houver engenho para proceder ao estudo de tempo e espaço e aptidão para seguir os caminhos do espírito (permitindo-lhe a última palavra), o resultado situar-se-á a razoável distância da elucubração e perto do velho prazer auditivo. A música portuguesa, essa, ficará exactamente onde está - e talvez haja, até, mais gente preocupada em saber do "movimento" num disco que nele recolheu o mote para início de trabalhos ou se o "surrealismo impressionista" final não levará à troca do "small bedroom at Barreiro" pelas paisagens da Cantuária. Mas será por 'caprichos' e solilóquios como estes - onde piano, guitarra e percussão vagueiam livremente a léguas da pop e do jazz ou um piano introspectivo refaz a cartografia de mares outrora cruzados por Satie - que, um dia, despertará num lugar sem medo da aventura. Ricardo Saló

Le Trio Joubran

CD + DVD World Village/Harmonia Mundi

Nos poemas de Mahmoud Darwish tudo tem uma causa: as pedras polidas em forma de face, os cedros vertidos pelas colinas, as janelas suspensas sobre o Mediterrâneo, o apelo do marulho na noite, o aroma do pão rompendo na madrugada, os mártires e minaretes que sustêm o peso do céu, o tempo contado em nuvens que passam imitando no ar o voo das andorinhas e no chão ensombrando prisões, a mentira sincera do amor, a esperança de uma miragem e a marcha de um profeta... Até o acaso tem causa. Vem do clarão com que nasce a palavra mas precede-lhe porque se chama Palestina, a sua terra sem terra, geografia de exílio, saudade e memória, para a qual, nas fileiras da OLP, escreveu a Declaração de Independência. Falecido a 9 de Agosto de 2008, deixou mais próxima do pó uma certa ideia de pátria. Por isso, e para que a língua conduza à ressurreição, organizou o trio de alaúdes dos irmãos Samir, Wissam e Adnan Joubran este concerto em torno da voz daquele que há mais de uma década acompanhavam em leituras. Com Youssef Hbiesch na percussão, igualam modulações e métrica, espelham palavras com ostinatos e colam harpejos a sílabas numa virtuosa homofonia em câmara ardente vulnerável apenas à vontade do vento e à infelicidade do Homem. João Santos

Miguel Zenón

Marsalis Music/ Universal

"Esta Plena" de Miguel Zenón foi considerado, em quase todas as latitudes, a melhor obra de jazz latino do ano de 2009. Acontece que "Esta Plena" está muito longe do que habitualmente se classifica de jazz latino, com as suas percussões exuberantes e rimos muito marcados. Miguel Zenón é um excelente saxofonista, cujas provas já foram dadas nos mais diversos contextos. Nesta obra, inspira-se na música mais popular de Ponce, no sul de Porto Rico que, tal como toda a música das Caraíbas, combina as síncopes africanas com as harmonias e cadências europeias. O que a plena tem de diferente da bomba ou jíbaro, outras das expressões do folclore popular de Porto Rico, é o seu carácter mais legato, traduzindo um espírito mais lírico. Assim, trata-se duma música à qual Zenón, com o seu quarteto, pôde acrescentar linhas de improvisação mais fluentes e poéticas, de que há exemplos em todo o CD. Anote-se a empatia de todos os músicos, mormente o venezuelano Luis Perdomo ao piano, uma peça fundamental na música do quarteto. Um exemplo admirável da coesão do grupo na interpretação da bela música composta por Zenón é o tema Calle Calma, uma quase improvisação colectiva. Noutra peça, Vila Coope, com uma base de percussão mais larga, Zenón aplica a espontaneidade do seu fraseio, em que junta intelecto e emoção. Anote-se, também, neste tema, a formidável interacção com o grande Perdomo. Raul Vaz Bernardo

Carmignola, Marcon

Venice Baroque Orchestra

Archiv/Universal

Com a Venice Baroque Orchestra, dirigida pelo maestro e organista Andrea Marcon (Treviso, 1963), o violinista Giuliano Carmignola (Treviso, 1951) gravou quatro concertos compostos pelos músicos setecentistas Domenico Dall Oglio, Michele Stratico, Pietro Nardini e Antonio Lolli. Na qualidade de compositores, nenhum dos quatro atingiu o grau de reconhecimento de Vivaldi, Tartini ou Locatelli. Mas todos eles gravitaram em torno da obra dos mestres, escrevendo concertos que merecem ser desenterrados do limbo do esquecimento. Os quatro violonistas viajaram pelas cortes europeias de São Petersburgo, Londres, Hamburgo, Estugarda, Viena, Florença e Madrid, trabalhando com Jommelli e Tartini ao longo da sua vida. Em 1771, com 46 anos de idade, Lolli conheceu Mozart que, na época, era um jovem de 15 anos em digressão triunfante por Itália. A música de Nardini foi muito apreciada por Leopold, o pai de Mozart. Dois dos quatro concertos interpretados, o de Dall Oglio e o de Nardini, são aqui gravados pela primeira vez. Sob o fantasma de Vivaldi, como sucede com o concerto de Dall'Oglio ou saindo do espectro de Tartini, como sucede com o de Nardini, as obras têm um brilho próprio, na interpretação de poesia refinada realizada pela orquestra veneziana. Ana Rocha