28 julho 2012 10:00

José Medeiros Ferreira na sala de trabalho da sua casa em Lisboa
Já entrado nos 70 anos, afastado da política ativa, José Medeiros Ferreira continua a comentar quanto o rodeia, com ácida ironia, inteligência e cultura. Considera ter perfil e preparação para ser primeiro-ministro ou Presidente da República.
28 julho 2012 10:00

D. Luís da Cunha foi um dos diplomatas portugueses que mais estudou e admira
O João Bosco é um velho colega e amigo, independentemente das nossas diferenças e até disputas. No liceu, disputámos ambos a chefia da turma no 6º e 7º anos. Das duas vezes ganhei as eleições. Depois voltámos a disputar mais duas eleições, nos Açores, para a Assembleia da República. As de 1995 ganhou ele, mas em 1999 ganhei eu. Na prática, ficámos empatados.
Mota Amaral foi um bom presidente do Governo Regional?
É muito difícil responder de forma linear, porque há nuances. Fez uma obra extraordinária em termos de coesão inter-ilhas e conseguiu construir a autonomia num ambiente muito complexo. Pecou pela forma como não respeitou a oposição no período inicial da autonomia, tratando-a um bocadinho por cima da burra, à maneira do "ancient regime". Nunca percebi porque fez isso, uma vez que o considero um democrata.

Uma janela do nº 23 para o mundo
Tenho uma explicação especial para essa minha vocação: pela observação e por uma força própria, imanente. Não sei explicar de outra maneira. Li muito, claro, por mim próprio e tive a sorte de ter uma grande bibliotecária no Liceu Nacional de Ponta Delgada, que me guiava. Aconselhou-me todo o Shakespeare. Tinha 16 anos de idade.
E o Antero de Quental?
Foi por mim próprio. O Antero fazia parte do clima.
Inclusive nas barbas, que deixou crescer...
O Antero também teve alguma influência. Durante muito tempo fui conhecido pelo "Ferreira das barbas".
O curso de Filosofia era um deserto
Porque quis estudar em Lisboa?
Desde que me conheço que sempre tive esse objetivo, que se cumpriu quando tinha 18 anos. Tinha escolhido Filosofia - não me perguntem porquê, porque não saberei responder. Nessa altura, aos 15 ou 16 anos uma pessoa tinha de escolher exatamente se queria ir para História, Direito, Economia ou outro curso. É uma coisa absurda, arcaica, e fui vítima dessa escolha precoce. Hoje em dia parece que há quem defenda esse modelo com bastante ênfase.

Medeiros é um dos políticos portugueses com pensamento próprio
Não diria tanto. A Filosofia, tal como foi dada na Faculdade de Letras de Lisboa, para mim, que vinha com muitas ilusões, foi uma grande desilusão. Tive grandes professores. Talvez o melhor tenha sido o padre Manuel Antunes, com quem aprendi muitíssimo, nomeadamente história da cultura clássica. Tive um outro excelente professor, de tendências totalitárias, Lívio Teixeira, que me ensinou bastante de Platão. Mas a maior parte das outras cadeiras era um deserto.
Já conhecia Lisboa?
Não. A primeira vez foi nesse Outubro de 1960, quando cheguei ao Cais da Rocha, com 18 anos. Vim num pequeno barco da Empresa Insulana de Navegação, o "Cedros", numa viagem de quatro dias.
Quando chegou a Lisboa abriu a boca de espanto e admiração?
Não. Vinha com aquela ideia do Mário quando chegou a Roma, que era de a conquistar a Sila... Não tinha qualquer dúvida sobre quem ficaria a ganhar com a minha chegada... O primeiro ano foi intensamente cultural. Concorri aos jogos florais da Queima das Fitas da Universidade do Porto e ganhei um prémio de Teatro, com uma peça chamada "Da discussão nasce a luz". Tenho ali o manuscrito.
Alguma vez foi representada?
Não. É uma peça experimental. Com uma boa encenação e produção, não tenho qualquer dúvida em como daria um bom sketch no Teatro São Luís,.

Ser deputado pelos Açores foi um dos cargos que mais o realizou em termos políticos
Não. Cheguei a andar pelo Grupo Cénico de Letras, onde aliás conheci a minha mulher, Maria Emília, mas nunca fiz teatro. Sou pouco ficcional, gosto mais da biografia, do diário, das memórias.
As elites portuguesas eram ignorantes
Como as do embaixador da Bélgica em Lisboa, Max Wery...
É um embaixador muito interessante, que veio para Portugal nomeado pelo governo belga para descansar. Era o seu último posto. Veio para cá em 1972 e depois apanhou a Revolução. Descreve muito bem o estado da sociedade portuguesa e das suas elites entre 1972 e 74. Estavam exatamente como há dez anos. Não tinham feito progresso nenhum, não conheciam nada do mundo internacional, pensavam mesmo que as colónias iam continuar. O relato de Max Wery diz-nos bem do desastre que se aproximava de Portugal e da ignorância das suas elites. Sempre tentei ladear esse lado oligárquico, ortodoxo, dogmático, castiço das elites portuguesas.
Fala das elites com um certo ar de desprezo.
Falo das oligarquias, das que têm acesso ao poder, com um grande atraso de entendimento das coisas, que são muito situacionistas, que defendem os pequenos interesses, muitas vezes mesquinhos, medíocres, imediatistas.

Na tribuna da Assembleia da República, numa sessão comemorativa do 25 de Abril
O outro momento em que isso me impressionou (de uma forma que percebi logo que íamos caminhar para o desastre) foi quando Portugal entrou na Comunidade Europeia, em 1996. Estou à vontade, porque fui eu que, no I Governo Constitucional, pedi a adesão, num ato de vanguarda. Cheguei ao Parlamento Europeu nesse ano; seis meses depois era talvez dos espíritos mais críticos do modo como Portugal estava a entrar na Comunidade. De uma forma acrítica, sem qualquer estratégia própria, perfeitamente passivo em relação às propostas da Comissão Europeia. Os nossos africanistas passaram todos a europeístas. A sua reciclagem, em três ou quatro anos, foi extraordinária: só viam os benefícios, nunca viram os lados perversos, contrários...
No entanto a primeira década de Portugal na Comunidade foi muito favorável.
Entrámos no melhor momento para Portugal. Foi um período de ouro, quando existia a Europa Ocidental e o conflito Leste-Oeste. Não vou dizer nomes, mas lembro-me de pessoas da direita portuguesa estonteadas com a Comunidade. Só viam fundos estruturais e Política Agrícola Comum, nunca os vi emitir um pensamento crítico. É esta a razão por que tenho uma visão tão crítica das oligarquias - das que têm poder, não das que têm ideias. Na dúvida, estou do lado do pensamento crítico e contra o situacionismo. Estou distante do paradigma dominante. Conheço várias pessoas que começaram o regime democrático em Portugal num paradigma totalitário e hoje estão no paradigma europeu - e das duas vezes estiveram erradas.

Num comício do PS, no Pavilhão dos Desportos de Lisboa, durante a campanha eleitoral de 1976
É um exemplo, mas há mais. São pessoas que se aproximam dos paradigmas quando eles já estão no ocaso. Quando alcançam o paradigma é como a ave de Minerva - já está no poente, no pôr-do-sol.
Tive sempre o 'complexo de benjamim'
Voltemos atrás, à Filosofia e à Faculdade de Letras.
Tive a sorte de encontrar na Faculdade colegas como o Sottomayor Cardia (com quem tive uma relação intelectual e política bastante intensa), o Passos Valente (que se suicidou), a Maria Antónia Fiadeiro, o Manuel Sérgio, o João Paulo Monteiro. Todos eles me pressionaram para tomar responsabilidades na pró-associação. O passo decisivo foi o ter sido eleito para a direção, com o pelouro das relações externas.
O Cardia já era do PCP?
Devia ser, mas só me convidou para as Juntas Patrióticas. Fui convidado para o PCP uma vez ou outra. O primeiro convite partiu do Eurico Figueiredo, no fim da crise estudantil.

Secretário de Estado do VI Governo Provisório, com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Melo Antunes
Não dirigia brutal, mas irreversível, o que é diferente. A primeira carga de pancadaria que recebi da polícia foi a 11 de Novembro de 1961, em frente do cinema São Jorge. Foi o batismo de fogo com a polícia de choque. Depois veio a greve estudantil. Eu era o mais novo da RIA. Tive sempre o complexo de Benjamim: fui o mais novo dos meus irmãos e em geral era o mais novo de tudo.
Como é que a família recebeu esse seu envolvimento?
A minha família, que não era nem favorável nem desfavorável ao regime (era relativamente despolitizada), recebeu com as cautelas próprias dos pais. "Primeiro forma-te; depois, então, quando tiveres um instrumento de trabalho..." Em 1965 fui expulso de todas as universidades do país, num processo administrativo do Ministério da Educação Nacional - que também fazia o seu próprio sangue... Ninguém era fascista, mas todos eram relativamente tendentes à repressão... Quando em Junho de 1966 cheguei a S. Miguel, o meu pai foi-me esperar ao paquete Carvalho Araújo, deu-me um abraço e disse: "Já que te meteste nisso, vai até ao fim."
Profissionalmente, o pai Ferreira era?
Sargento da Guarda Fiscal. E a mãe era doméstica, como lhe competia nessa altura.

Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional, de Mário Soares, com o embaixador dos EUA em Lisboa, Frank Carlucci (à direita)
A ditadura não era fascista, era simpática e querida...
Em tempos disse que a expulsão das universidades foi mais brutal e traumática que a própria experiência de prisão pela PIDE.
Fazia parte da hipocrisia do regime. Uma coisa eram as prisões, a repressão clara; outra eram os instrumentos como a cobardia das autoridades académicas, que levantavam autos disciplinares aos estudantes que tomavam a palavra num plenário. Fui expulso porque tomei a palavra duas ou três vezes em reuniões de estudantes (ao ar livre, nas escadarias da Faculdade de Letras) que não tinham sido autorizadas pelas autoridades académicas e que, por isso, testemunharam contra um aluno de 23 anos.
Foi o caso do diretor da Faculdade?
Já não sei bem quem era - creio que era o Manuel Heleno. O reitor era o Paulo Cunha e o ministro o Inocêncio Galvão Teles. Quando ele foi convidado para ministro da Educação, em 1962, eu estava preso. O prof. dr. Inocêncio Galvão Teles terá posto como condição ao Doutor Salazar que os poucos estudantes que estavam presos - e em especial o secretário-geral da RIA, que era eu - fossem libertados. Fui depois chamado ao Paulo Cunha, que foi quem me sugeriu essa interpretação. Mas em 1965 foram as próprias autoridades académicas, inclusive o ministro da Educação Nacional, quem fez a maior parte do sangue entre os estudantes. A expulsão significava que nunca poderia entrar na Função Pública nem ensinar nos liceus. Tinha apenas 23 anos.

Num encontro com outros "presidencialistas", no Palácio de Mateus, em 1978. Reconhecem-se, da esquerda para a direita, Manuel Lucena, António Barreto, José Medeiros Ferreira, Francisco Sousa Tavares e Loureiro dos Santos
Pois era.
Como foi preso?
Em casa, na Rua de Entrecampos, às sete da manhã. Já tinha estado preso na Parede, na leva coletiva após a greve da fome dos estudantes. No Aljube fui alvo de tortura do sono, um mês de isolamento sem poder ler ou escrever, e muitas perguntas e ameaças (como a de me atirarem de um avião no Golfo da Guiné). Na minha cela, num quarto andar do Aljube (que, apesar de tudo, era o melhor andar), estava o padre Joaquim Pinto de Andrade (presidente honorário do MPLA), o pintor Nikias Skapinakis, e dois membros do PC. Fizemos uma grande amizade. Eu tinha 20 anos, até era menor. Ter estado com o Joaquim Pinto de Andrade foi uma oportunidade única, pela suas qualidades intelectuais e de coração. Até nem sei se não terá sido a primeira pessoa que me telefonou depois do 25 de Abril. O terem-me colocado naquela cela foi um erro técnico dos serviços prisionais do Estado salazarista. A ditadura tinha esse lado artesanal. A ditadura obviamente não era fascista, era simpática e querida - mas fazia esse género de coisas.
O Estado não era fascista?
Só conheço um Estado que se tenha proclamado fascista, que foi o italiano. Para mim o salazarismo era uma ditadura repressiva. Considero a repressão salazarista um atentado permanente contra a dignidade humana. A violência podia ser gradual, mas o atentado à dignidade humana era permanente.

José Medeiros Ferreira durante a entrevista ao Expresso
Expulso de todas as universidades portuguesas
No seu recurso da expulsão das universidades teve o apoio de grandes advogados.
De três grandes advogados: Salgado Zenha, Jorge Sampaio e Jorge Santos. E houve um quarto que não assinou, que foi o Vasconcelos Abreu. Quis recorrer da expulsão. Todos se espantaram, mas sempre fui um formalista, como se nota pelos recursos que fui fazendo e pelo facto de ter pedido o estatuto de refugiado político. Pensei: "Não posso dar a aparência que aceito esta pena sem protesto." Tive sorte de ter aqueles advogados à minha disposição para o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Um dos juízes do Supremo, o desembargador Furtado dos Santos, fora candidato da lista da União Nacional e meu adversário nas eleições de 1965. Isso dá a ideia do vale-tudo do regime.
O Furtado dos Santos chegou a desempenhar um importante cargo no regime democrático!
O general Ramalho Eanes, em meados de 1977, achou que tinha chegado a hora de fazer uma grande reconciliação nacional. Falou-me em recuperar as pessoas e numa política de abertura. Como exemplo, referiu o juiz Furtado dos Santos. Respondi: "Não digo que não, mas foi ele quem me expulsou de todas as universidades..." Foi uma coincidência levada da breca. Presumo que o juiz deve ter ficado honrado por me ter expulso.
O que o levou a ir para a Suíça?
Primeiro, a malta da PIDE acompanhava-me permanentemente. E depois eu estava a fazer a tropa, no Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora. Na minha companhia estava o aspirante a oficial miliciano Beja Santos. Nenhum de nós estava disposto a fazer torturas aos prisioneiros que encontrássemos pelo caminho. O Beja Santos disse que não faria isso tendo em conta a sua consciência cristã e eu tendo em conta a convenção de Genebra. Isso levou à instauração de um auto de averiguações no Regimento. A partir daí, as poucas dúvidas que eu tinha sobre o que ia fazer dissiparam-se. Preso, expulso, candidato a deputado pela Oposição Democrática, sujeito a um auto de averiguações... Preparei as minhas coisas e exilei-me. Quando saí de Portugal escrevi um texto em que dizia que "estava pronto a voltar ao Exército, ao qual reconheço virtudes". Foi uma frase que me separou de muitas famílias políticas da altura. Escolhi a Suíça e, dentro da minha linha formalista que gosto de acentuar, fiz questão de pedir o estatuto de refugiado político nos termos da convenção internacional de 1951, para demonstrar que o meu ato era político. Da minha geração, fui o primeiro a pedir e a obter tal estatuto.
Sinto-me capaz de qualquer cargo
Saiu do país a salto?
Claro. Fui pelo Norte, com ajuda da equipa do Vítor Wengorovius. Desde que fora líder estudantil que me sentia o representante de uma geração insubmissa! Não podia ficar a meio e tinha que ser consequente com o que tinha afirmado. Foi uma decisão que teve alguns aspetos dilemáticos. Sabia muito bem que não chegaria a Presidente da República com esta decisão. (Silêncio). Não estou a brincar.
Como assim?
Sabia muito bem que não chegaria a Presidente da República.
Ainda hoje?
Possivelmente.
Está a falar em termos formais?
Não. Em termos políticos. Sabia que ia ser muito penalizado. A Maria Emília é testemunha. "Isto significa um limite à minha ação política", disse-lhe. "Mesmo assim faço isso." Sinto-me capaz de qualquer cargo. (Silêncio).
Mas o Manuel Alegre, que também foi desertor, candidatou-se por duas vezes a Presidente.
Mas não foi eleito. E reparem: quantas vezes disse ele que esteve em África? Mas não vou dizer mais nada sobre o assunto.
No livro "Pátria Utópica"escreveu que deve a si próprio "ter sido ministro da pasta para a qual" se "preparara na medida do possível durante o exílio".
São brincadeiras que eu faço, mas nessa formulação está certo. Costumava dizer que havia muitos estudantes do Técnico e de Económicas que estavam ali a foçar para depois, num regime democrático, entrar à ilharga: fazem umas contas, mostram uns gráficos na televisão e empalmam isto. Ora, nós devíamos a nós próprios, e à luta contra o regime, ter também algumas pessoas que percebessem alguma coisa disto, senão estaríamos a entregar isto de bandeja ao pessoal que estava ali a preparar-se para o usufruto da democracia. De facto fiz um esforço para me preparar, tal como o António Barreto e o Eurico Figueiredo. Numa dessas brincadeiras disse uma vez que eu próprio seria ministro dos Negócios Estrangeiros, o Barreto ministro da Agricultura, o Eurico secretário-geral do PS (coisa que falhei) e o Carlos Almeida reitor da Universidade de Lisboa - não foi ele, mas foi um amigo dele, o António Nóvoa. A coisa ficou ali, ela por ela. Quando fui para o exílio não tinha a menor ideia sobre quando o regime cairia. Até 1967 tinha a certeza que não caía. Cheguei a escrever: "A guerra colonial, força e fraqueza do regime fascista". Depois, com a queda de Salazar e a experiência do Marcello, pensei que podia durar mais uns dez anitos, se tivesse feito algumas reformas.
Chegou a acreditar nisso?
Eu nunca. Escrevi um artigo para "O Tempo e o Modo", mas que foi cortado pela censura. Eu conheci bem Marcello Caetano enquanto dirigente estudantil, até tínhamos boas relações. Conhecia a sua extrema prudência, sabia que o seu último ato de insubordinação tinha sido a demissão de reitor. Tinha a certeza absoluta. Além de que houve uma comédia de enganos entre ele e a hierarquia militar: ele pensava que a hierarquia militar queria a continuação da guerra e parte daquela não a queria - por isso alguém se enganou, e só pode ter sido ele. Se tivesse chamado os militares, um por um, tinha tirado a limpo. Descolonizar, para o Marcelo, era superior às forças dele, era preciso que estivesse enquadrado pelos melhores generais do Exército, que também andavam ali a enganar-se uns aos outros.
O seu amigo Eurico Figueiredo ainda admitiu a hipótese de voltar para Portugal.
Mas eu não. Nessas coisas sou muito claro. Não gosto de situações ambivalentes. Era exilado político.
Amílcar Cabral podia ter sido secretário-geral da ONU
Em Genebra lançaram a revista "Polémica", de uma esquerda não-alinhada, alternativa.
Em grande parte era uma revista de contestação à visão tradicional do PC e também ao que a gente considerava os desvios de direita da oposição clássica ou burguesa (como se queira chamar) à ditadura. Era uma revista de esquerda democrática, que procurava os seus caminhos. O Mário Soares, por exemplo, deu a maior importância à revista.
Era uma revista assumidamente marxista?
Tinha elementos marxistas, mas de um marxismo libertário.
O senhor tem uma influência marxista?
Eu não. Sou capaz de utilizar os instrumentos marxistas, mas não me sinto marxista, nem pouco mais ou menos.
Como colaborador da "Polémica" conheceu Amílcar Cabral, o secretário-geral do PAIGC.
Por causa de uma entrevista que nos deu em Londres, por onde passou em 1971, o que tem qualquer coisa a ver com a influência britânica na descolonização (que é um assunto que os portugueses nunca tocam). Nessa entrevista disse uma coisa muito interessante: que estaria disposto a aceitar um período de transição para organizar a independência da Guiné-Bissau, durante o qual aceitaria ser secretário-geral da província da Guiné. Achei essa proposta cheia de bom-senso, uma real proposta política. No comboio, a caminho de Manchester, disse-me: "Uma das coisas que me custa é que estamos a educar uma geração só para a luta armada. E temo o que esta geração venha a fazer desta aprendizagem tão fácil, que é manusear armas." Lembro-me sempre desta frase quando há um golpe de Estado na Guiné - e eles têm sido vários. Amílcar Cabral teria dado um grande estadista, mesmo um secretário-geral das Nações Unidas.
Secretário-geral da ONU?
Sim. Se o Kofi Annan foi um grande secretário-geral da ONU, o que faria o Amílcar Cabral!
Está a colocá-lo num patamar acima?
De entendimento político, sim. O outro é um diplomata, aliás muito bom. Trabalhámos numa coisa que nunca foi para frente - nem poderia ir... -, que é a chamada reforma das Nações Unidas. Foi uma das coisas para as quais o Guterres me convidou no tempo da Internacional Socialista (mais ou menos em 1994).
A tese sobre os 3 D para o Congresso de Aveiro
Passemos agora ao 25 de Abril.
Antes, tinha apresentado uma tese ao congresso de Aveiro. Com a experiência de 18 meses de passagem pela instituição militar, tinha percebido algumas clivagens por parte do Spínola na Guiné e sobretudo do Costa Gomes em Angola, que era o nosso oficial general mais bem preparado. Num discurso, disse que estavam ali para defender a integridade das fronteiras de Angola. "Isto não é o discurso do Minho a Timor" - comentei para mim. Quando li isso, comecei a escrever a tese para o Congresso de Aveiro.
Alguma vez comentou isso com o próprio Costa Gomes?
Comentei. O Costa Gomes era muito reservado, embora gostasse muito de mim. Quando tomei posse de secretário de Estado, em 1975, cumprimentou-me efusivamente. Depois até estive na rua contra ele. A vida política é assim. Ele fez coisas tremendas: aquele V Governo estava no fio da navalha. A minha tese apontava para que fossem as Forças Armadas a derrubar a ditadura e a promover uma política de descolonizar, democratizar e desenvolver.
Os famosos três D. Uma tese herética.
Claro. A Maria Emília veio de propósito assistir ao congresso de Aveiro. A maior parte da malta disse: "O Zé Medeiros está fora do país, no exílio, o que faz muito mal às pessoas..." O único que ainda disse que se calhar a tese era um bocadinho precoce foi o Jorge Sampaio - justiça lhe seja feita. Quando veio o 25 de Abril, eu estava preparado. Talvez não para aquela data, uma vez que admitia que fosse preciso mais um ou dois anos e até um golpe de Estado de direita.
Conhecera alguns militares envolvidos na conspiração?
O que eu conhecera de mais perto fora o Melo Antunes, que era casado com uma micaelense e com quem tinha contactado nos Açores. Era uma pessoa razoavelmente bem preparada. Gostava muito de música e de Stendhal. Escrevi-lhe uma carta depois do discurso do Spínola de 27 de Julho de 1974, sobre a descolonização. "Depois deste discurso vou regressar a Portugal", disse-lhe. Só não faço uma grande ênfase nesta carta porque a enviei sem cópia. Dizia-lhe que, tendo em conta que estudara os anteriores processos de descolonização, tínhamos que preparar bem a forma de descolonizar. Percebi logo que ele ia ter um papel.
Podia ter dado um bom ministro da Defesa
Entretanto, você recusou substituir o Vitorino Magalhães Godinho como ministro da Educação do III Governo Provisório. Porquê?
Porque, como disse numa reunião em casa de Mário Soares, a minha atividade política não passava por aquela pasta. E não queria ser membro de um governo sem, primeiro, ter sido eleito deputado. Faz parte dos tais formalismos. Nessa reunião estavam todos os que já tinham sido convidados para ministro antes de mim: Miller Guerra, Sottomayor Cardia, António Reis, Rui Grácio. Tinha havido umas seis ou sete negas, já deviam estar em desespero de causa, e como eu tinha sido dirigente estudantil...
Nessa altura você ainda não era militante do PS.
Fui convidado em finais de 1974, três ou quatro dias depois da demissão do Vitorino Magalhães Godinho. Estava na tropa, porque quando voltei de Genebra apresentei-me às autoridades militares e fui para a 5.ª Divisão, donde saí em Fevereiro de 1975. Em quem eu confiava bastante era nos jovens majores do Estado-Maior, com preparação profissional e intelectual, que me davam algumas garantias e que eu simbolizava no Vítor Alves, no Loureiro dos Santos, no Costa Brás.
Gostaria de ter sido militar?
Ao nível de general, sim... (estou a brincar!) Podia ter dado um bom ministro da Defesa - isso é claro. É das tais pastas que me foram sugeridas duas ou três vezes, mas em que recuaram sempre. Estamos a falar dos anos de 1999 ou 2000, no Governo de Guterres. Cheguei a ser insinuado, mas sabia que não ia ser convidado. Então o Veiga Simão não era um grande estratego da logística? Não tenho nada contra, mas gosto de apreciar.
Acompanhou a revolução e o PREC de forma atenta...
... e sempre com espírito crítico! Eu tinha a certeza que o novo regime tinha de ser democrático e pluralista, aceitando formas híbridas de transição. Sabia que parte dos oficiais do MFA queria isso - não tinha a certeza era dos seus apoiantes civis. Sou o primeiro, penso eu, a propor a institucionalização do MFA, num artigo no jornal "República", em dezembro de 1974. O principal objetivo era ter eleições. Em fevereiro de 1975 dois grandes amigos meus falaram-me de um possível golpe de Spínola. "Isso é um disparate", comentei. "Um golpe militar, um ou dois meses antes de eleições, não faz sentido nenhum. Se alguém não respeitar o resultado das eleições, então ele que se movimente. Agora, se se antecipa às eleições, a confusão vai ser tal que até as eleições podem ficar em perigo. Nem pensem numa coisa dessas."
Quem foram esses seus dois amigos?
(Risos) Duas pessoas que na altura foram mencionadas. Civis. Apoiantes de Spínola, na altura - ou pelo menos ao corrente das suas intenções.
Vasco Gonçalves era um desbussolado
Spínola foi um bom militar?
Quem sou eu? Tenho dúvidas. Do ponto de vista político, na Guiné acho que lhe faltou dar um passo em frente, que o Marcello não deixou dar. Spínola devia ter obrigado o poder político a negociar a tal solução política que o próprio Amílcar Cabral disse que aceitava. O meu general de referência é o Costa Gomes. Deu uma grande cobertura legal ao 25 de Novembro, o que não é brincadeira.
Está a partilhar a ideia que Costa Gomes evitou uma guerra civil?
Sim. Já escrevi isso. Evitou grandes perturbações e um conflito militar, certamente.
Ainda não falou de Otelo Saraiva de Carvalho!
(Silêncio) Acho que Otelo é um bom executante e organizador, certamente que um excelente tático - não sei se é um bom estratego. Não sei. Quem não estima o Otelo? Mas nunca tive plena confiança no juízo dele. Do Eanes, tendo dúvidas, posso dizer que faço confiança no seu juízo. No Otelo, teria mais reticências.
E do Vasco Gonçalves?
Não! Era um desbussolado - não tinha bússola. Um radical desnecessariamente. Sempre.
Há quem diga que tinha uma agenda muito marcada, não sei se própria.
Ele, pessoalmente? Não sei. O PC talvez, mas o PC é outra coisa, não é o Vasco Gonçalves. Nunca acreditei que o PC estivesse a atuar só por causa de África. E sempre acreditei que o PCP e a própria União Soviética queriam alargar um pouco os termos, as percentagens, das zonas de influência.
Soares estava muito bem informado
Por que razão entrou para o PS? Você, que sempre prezou a sua independência.
Eu tinha tido desde 1962 um longuíssimo namoro com Mário Soares, que é ótimo a namorar politicamente. Ainda hoje. Ele disse sempre aquela frase: "Vocês fazem lembrar-me aquelas mulheres bonitas que estão sempre a dizer que não e depois acabam em solteironas..." Fomos colegas na lista da oposição democrática em 1965, onde voltou a fazer uma grande aproximação. Depois, no exílio, vai-me ver à Suíça por duas ou três vezes, e eu vou também vê-lo a Paris. Entrego-lhe pessoalmente a minha tese para o Congresso de Aveiro. Responde que é muito interessante, mas que deve interessar mais ao Spínola. Ele manda-me o livro "Le Portugal Baillonné", com uma grande dedicatória, muito calorosa - e que conservo comigo. E começa a encetar um princípio de negociação para uma possível entrada no futuro PS, mas deixou as negociações a meio. Na interpretação dele, fomos nós que não quisemos ser membros fundadores do PS. A minha leitura é que foi ele que não fez questão que fôssemos fundadores do PS. Depois do 25 de Abril, venho cá em Maio e falo com ele. Desde 1965 que sabia que era o verdadeiro líder da oposição democrática. Quando o vejo em ministro, ele tinha uma calma olímpica, muito seguro e bem informado - que é uma coisa que as pessoas não percebem. Acham que ele não lê os dossiers, mas é muito bem informado - ainda hoje. Sabia muito bem o que estava a acontecer ao país.
Não era só intuição.
Ele nessa altura tinha excelente informação. Em dezembro convidou-me para substituir o ministro da Educação e depois para a Constituinte, como independente. Mas depois do 11 de Março achei que era especioso manter-me como independente. A 21 de Março de 1975 faço um discurso, num comício no Campo Pequeno, que é uma coisa arrebatadora. Faço um ataque às prisões que estavam a ser feitas na altura "pour n'importe qui". Eu era um dos últimos oradores, o Soares era o último. Quando aquilo já estava a aquecer imenso, o Soares puxa-me a manga e diz: "Oh Medeiros, você não aqueça demais esta malta, que isto está perigoso!" (Risos) Percebi que ele queria uma pausa para entrar a seguir.
Convém que a primeira parte do concerto não seja melhor que a segunda...
Exatamente. Ele tem uma inteligência política fulgurante. Fui depois para a Constituinte, onde penso que tive um papel importante. A seguir, há o VI Governo Provisório.
Portugal devia ter renegociado o acordo de Alvor com o MPLA
Em que você não é convidado pelo ministro.
Pois não! Aquando da formação do VI Governo, do almirante Pinheiro de Azevedo, o Mário Soares telefonou. Disse-me que não ia ele para ministro, explicou que era para poder preparar as eleições legislativas, mas que fazia muita questão que o PS tivesse uma presença no Ministério dos Negócios Estrangeiros e gostava que fosse eu. Perguntou: "O Medeiros Ferreira dá-se bem com o Melo Antunes?" "Tivemos ótimas relações nos Açores." "Então ele há de falar consigo, para o convidar para secretário de Estado." E fiquei à espera.
Até hoje!
Até hoje! Teve uma semana para me convidar e acho que o devia ter feito. Mas, talvez distraído, ou com muitas reuniões, não me disse nada. Foi um erro técnico. Quando fui tomar posse como secretário de Estado, a pessoa que me fez maior festa foi o general Costa Gomes. A partir daí, tomo posição como secretário de Estado perante a política externa portuguesa de uma forma autónoma e diferente, não sendo desleal com o ministro. Quando houve uma votação nas Nações Unidas, comparando o sionismo ao racismo, achei que não podíamos votar a favor. Foi uma das divergências iniciais, que me marcou. Fui contrário a essa votação.
Em que sentido é que Portugal votou?
Acho que nos abstivemos, mas agora não tenho a certeza.
Um outro problema com Melo Antunes foi a respeito de Angola...
Em todas as transferências de soberania Portugal tinha tido um acordo prévio que regulava os termos dessa transferência e do reconhecimento da independência. No caso de Angola, como o Acordo de Alvor foi suspenso em agosto de 1975, Portugal deixou de ter um diploma que guiasse os termos do pós-independência. A minha posição era que Portugal devia renegociar com o poder de facto - que era o MPLA - um novo acordo, que, a exemplo do acontecido em Cabo Verde, São Tomé, Moçambique e Guiné, também regulasse os termos das relações entre Portugal e o novo Estado.
Uma espécie de novo Alvor...
Exatamente. Angola fez o seu papel, Portugal é que não soube fazer o dele. Toda a discussão do reconhecimento ficou viciada. O que se discutiu era saber se se devia reconhecer, ou não, o novo Estado, no imediato, a partir de 11 de novembro de 1975. Houve uma grande discussão política, em que o PCP terá tido um papel muito importante, e a discussão envenenou-se. Houve diferenças entre o Governo e o Conselho da Revolução. Uma das questões que complicou o reconhecimento foi a posição de alguns aliados de Portugal, e designadamente a diferença entre os EUA e a Grã-Bretanha, que reconheceu de imediato. Nas questões de descolonização, Portugal sempre teve uma posição mais próxima de Londres. Já como ministro, e tal como tinha previsto, aos novos países de expressão portuguesa não interessava a tese das relações privilegiadas, porque queriam tomar decisões imediatas que nunca seriam agradáveis para o Estado português. Ainda no consulado de Melo Antunes no MNE, Angola suspendeu as relações diplomáticas com Portugal. Quem as restabeleceu fui eu, como ministro, em setembro de 1976 em Cabo Verde, com o então ministro das Relações Exteriores, José Eduardo dos Santos, com quem me entendi muito bem. Acertámos logo um calendário do serviço consular, que era o que, no imediato, mais dizia aos portugueses que tinham ficado em Angola. Apesar desse diferendo com o Conselho da Revolução, o Melo Antunes e o Costa Gomes, creio que a minha tese teria feito todo o sentido...
Era a mesma tese de Soares e Sá Carneiro?
Eles tinham uma tese mais crua. A minha era mais formalista e tinha um paralelismo com os acordos que Portugal já tinha celebrado. Como disse, fui eu que normalizei as relações diplomáticas com Angola. Escrevi o draft do programa de Governo, deixei lá a impressão digital, sobretudo no que diz respeito ao pedido de adesão à CEE e aos respetivos pressupostos - um deles era a aproximação das ex-colónias à convenção de Lomé.
Freitas ainda andava de bibe e já sonhava com a Europa...
O seu papel no processo de adesão à Europa está um pouco esquecido...
Tenho ali um livro que dá todo o relevo.
Os grandes políticos envolvidos foram o Jaime Gama...
...o Jaime Gama foi quando da assinatura do acordo, não no pedido de adesão. Assinaram o Rui Machete e o Ernâni Lopes, que fizeram o favor de deixar o Gama assinar.
O favor? Mas era ele o ministro dos Estrangeiros...
O Ernâni e o Machete assinaram por direito próprio, eles é que percebiam daquilo - não sei se me faço entender... Mas eu é que sou o responsável pela tomada de decisão, a 4 de fevereiro de 1977. Estava previsto que as negociações durassem três anos e foram oito. É claro que a tal oligarquia portuguesa se sentiu mais segura com o dr. Mário Soares, que tem um ar de bonomia, e foi por isso que o escolheram e ao Jaime Gama - mais o Sá Carneiro (que não teve papel quase nenhum, mas é sempre bom ter alguém da direita envolvido) e o prof. Freitas do Amaral (que, conforme diz nas memórias, começou a sonhar com a Europa ainda andava de bibe...)
Por que se demitiu de ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional, chefiado por Mário Soares?
Nós tínhamos cumprido quase todo o programa do I Governo, só estava em suspenso o estabelecimento de relações com a China. Começou a haver alguns pequenos problemas. Eu só conheço uma pessoa mais intuitiva que eu em termos políticos, que é Mário soares. Nessa altura eu vinha praticamente todos os dias nos jornais e isso começou a criar um certo mal-estar em S. Bento e nas imediações.
O pedido de adesão à CE não foi totalmente pacífico no Governo. Quais foram os ministros mais timoratos?
Os das pastas económicas e alguns ministros políticos, que perceberam a importância retumbante mas que se tinham atrasado um pouco...
Porque não diz os nomes?
Talvez porque vá guardar isso para as minhas memórias... Essas coisas passavam-se em conselho de ministros, cujas reuniões eram oficialmente secretas - mas basta ver o Expresso, que se fartou de dar notícias sobre o processo de adesão. Havia reticências da Holanda, da Bélgica...
Os principais apoios vieram de onde?
Os dois países que mais apoiaram, desde o início, foram o Reino Unido e a Alemanha. Em abril de 1977 a questão do pedido de adesão estava executada, bem como a consolidação das relações com os países ocidentais. Para mim era óbvio que a parte que tinha de se aprofundar era a das relações com as ex-colónias. Até abril de 1978 eu tinha-me apoiado e ia continuar a apoiar na figura do primeiro-ministro, com quem tive uma relação com a maior das transparências - disse-lhe sempre o que pensava, quando estava de acordo c om ele e quando não estava, o que me custou alguns sarilhos. E de vez em quando discordava dele - como aconteceu quando decidiu estabelecer relações diplomáticas com Israel.
Soares convenceu-se que eu estava a conspirar contra ele...
Foi uma iniciativa do primeiro-ministro?
Sim, num encontro que teve, no âmbito da Internacional Socialista, com o Shimon Peres. Também estive presente, não me estou a queixar de nada.
Achava que tinha de ser uma decisão colegial?
Exatamente. E tendo também em conta o que podia estar em jogo (como depois esteve), que eram as relações com os países árabes... Se bem que eu estivesse inteiramente de acordo com a decisão. Mas essa não foi a grande causa da crise - que teve a ver com o golpe de estado do Nito Alves de maio de 1977, em Angola. O general Eanes tinha boa informação sobre quanto se passava em Angola, acredito que através da sua antena militar. Nos dias 27 e 28 de maio acompanhei o que se passou em Luanda com boas informações, que me foram fornecidas pelo general Eanes, sobre o desfecho do golpe de estado. As informações que chegavam ao governo eram mais parcelares e menos precisas. Duas semanas depois realizaram-se na Guarda as comemorações do 10 de junho e o general Eanes disse-me: "Gostava de enviar alguém a Luanda para fazer um estudo da situação e falar com os principais protagonistas, entre eles o presidente Agostinho Neto, e gostaria de saber a opinião do governo." Disse-me que ia falar ao primeiro-ministro, que, no caminho para Belém, me perguntou o que pensava. Respondi que era favorável à diligência do general Eanes. Soares observou que isso não fazia muito sentido, que se devia poupar o general Eanes... Disse-lhe que era testemunha que em Belém estavam bem informados sobre o golpe de estado, que conheciam bem o terreno e que mais valia sabermos diretamente as intenções do poder que acabava de ser reafirmado em Luanda. Quando chegámos ao palácio de Belém o Presidente voltou a pôr a questão, Mário Soares disse a sua opinião e eu expus a minha. O primeiro-ministro não foi, portanto, apanhado de surpresa, mas isto causou um primeiro arranhão nas nossas relações. Eu tinha 35 anos, achei que era o melhor para o país, nunca mais pensei no assunto e o Eanes enviou a Angola o capitão Fonseca de Almeida. Em setembro, tive viagem muito bem-sucedida às Nações Unidas, em cuja assembleia falei em português, tal como Angola. No mesmo mês, o Mário Soares chamou-me para dizer que estava a pensar mandar o Manuel Alegre a Angola. Disse que achava bem; que não me oferecia para ir porque as relações diplomáticas ainda não estavam bem normalizadas, mas percebia perfeitamente a ideia de um enviado especial, sendo que o Alegre tinha boas relações com elementos do MPLA que conhecera na Argélia. Depois, no dia 5 de outubro, ao discursar em Alenquer, Soares elogiou duas pessoas: Jorge Campinos, que tinha sido ministro do Comércio Externo, e Manuel Alegre, secretário de Estado da Comunicação Social, que fora a Angola. Eu acabara de chegar das Nações Unidas, mas Soares não me disse nada. Pensei: "Não é cedo nem é tarde. Já fiz praticamente tudo o que havia a fazer e não quero estar no conselho de ministros com Mário Soares a fazer-me umas partidinhas."
Então não houve uma divergência de fundo?
São episódios. Eu era mais formalista.
Considerou uma desconsideração pessoal?
Não. Considerei que era um bom momento de sair. Achei que estava a fazer um muito bom papel, mas se o primeiro-ministro não o reconhecia e preferia as visitas informais, então que continuasse com elas. Saí com a maior das tranquilidades. Escrevi uma carta a 7 de outubro de 1977, mas como Soares não estava cá, entreguei-a a Henrique de Barros. Depois meteu-se-lhe na cabeça que havia uma conspiração com Belém. É falso, não havia nada.
Medina Carreira nem sabia as divisas que Portugal tinha
Uma conspiração entre si e o presidente Eanes contra ele?
Sim, que a demissão era para criar uma crise no governo. A minha demissão foi individual. Pedi a alguns ministros para não saírem do governo.
António Barreto?
Por exemplo.
Vítor Cunha Rego?
Os que me escreveram cartas...
Medina Carreira?
Não, Medina Carreira só sabe fazer gráficos, não tem sensibilidade política. Era ministro das Finanças mas nem sequer sabia as divisas que tínhamos no Banco de Portugal - mas não se diz isso a ninguém senão a Judite de Sousa fica sem interlocutor. Em abril foi falar com Mário Soares, para lhe dizer que não tínhamos divisas. O Mário Soares disse-me: "Ó Medeiros, vamos resolver o problema." E lá fomos à Alemanha. Politicamente, o Medina Carreira não contava. Era um ministro sério, não muito previdente... Mas também não quero falar mal dele. E hoje é útil: as contas que ele faz atempadamente são úteis. Na altura também teriam sido...
Quais foram os ministros que lhe escreveram cartas quando se demitiu?
O Mota Pinto, o Nobre da Costa, o António Barreto, que chegou a manifestar que se queria demitir. Eu não estava interessado numa crise política, só queria sair tranquilamente. Soares estava convencido que havia uma conspiração entre mim e Eanes, para eu ser nomeado primeiro-ministro. Não fazia sentido nenhum. As nossas relações, aí, caíram abruptamente.
Porque nunca divulgou essa carta? É assim tão violenta?
Não, é uma carta circunstancial, achei que não tinha interesse histórico.
Arrepende-se de a ter escrito?
Não, não.
Então porque não nos dá?
Não a tenho à mão. A carta não tem nada de especial... Eu tinha ideias diferentes sobre a evolução do regime. Achava que devíamos acentuar mais a tónica no Presidente da República. O Governo devia depender do Presidente e da sua confiança, senão a eleição direta do Presidente da República perdia muito do seu sentido e vigor. Depois de sair do Governo estive uns meses na Assembleia e acabei por sair do PS. O ambiente era muito adverso, Soares era todo-poderoso e havia toda aquela linha de infiltração do que chamo o Portugal do interior. O PS tinha sido feito no exterior, mas havia uma linha de infiltração interna, que tinha o seu calendário. Tinham entrado no PS depois da fundação, sob o guarda-chuva de Soares, e queriam arranjar uma forma de o pôr na alheta, embora ainda não fosse esse o tempo. Vieram falar comigo...
António Barreto aprisionado pela direita latifundiária
Quem?
O João Soares Louro, por exemplo. E disseram-me: "Não te precipites, temos tempo". A grande mudança foi com as eleições presidenciais de 1985/86, com o Constâncio, Guterres, os tecnocratas, a SEDES e toda essa malta que esteve ali a ganhar legitimidade... Ora eu considero-me antecessor do PS, fazia política antes do PS. O António Barreto também saiu do PS, com 15 dias de diferença, e tivemos a ideia de deixar um testemunho sobre o futuro de Portugal, na perspetiva da evolução do regime. Escrevi um artigo no "Diário de Notícias" sobre a utilidade do referendo. Teria sido partidário do referendo para a Constituição.
Um plebiscito?
Plebiscito é só sim. Seria sim ou não, um referendo. Propusemos isso no "Manifesto Renovador", alterando os limites materiais da revisão constitucional - para fazer a revisão de uma só vez, em vez de ser às pinguinhas, quase todos os anos. Queríamos terminar nomeadamente com a irreversibilidade das nacionalizações e criar círculos uninominais. Hoje em dia não defendo este tipo de círculos, que dariam o caciquismo e o enriquecimento mais que lícito de todos os candidatos. Prefiro um sistema misto, com círculos mais próximos das populações. O manifesto foi feito por mim e pelo António Barreto. Desde Genebra que mantivemos uma relação muito forte, embora o Barreto se tenha deixado aprisionar um bocadinho pela direita latifundiária... Sentia-se uma espécie de Afonso Henriques a distribuir as terras...
O passo seguinte à sua saída do Governo mostra que afinal havia divergências.
Não saí em divergência com ninguém. Estava a fazer uma proposta para o país. Quando fiz o manifesto não estava a pensar nem em Mário Soares, nem no Sá Carneiro - embora o projeto constitucional de Sá Carneiro se aproximasse das nossas ideias. Nem sequer olhava para o Eanes, que de certa maneira era o meu apoio político, porque eu era defensor de um regime em que o Governo também respondesse politicamente perante o Presidente - o que terminou em 1982.
Sá Carneiro quis candidatar-se a Belém
Mantém hoje a visão de um regime semipresidencial?
Com nuances. Hoje em dia pondero melhor o papel do Parlamento, porque não quero aventuras em Portugal. O meu maior receio é que haja aventuras políticas. Sou pela evolução do regime, mas com passos seguros. Nunca me viram desprestigiar o Presidente. Naquela altura, o manifesto reformador teve mais apoio das elites do que estávamos à espera. Sá Carneiro propôs-nos um pacto aceitável: inteira liberdade de ação para os deputados renovadores e a formação de um grupo parlamentar próprio. Só ficávamos obrigados a votar as questões de estabilidade governamental: orçamento, moções de censura e de confiança. Salvaguardou-se a liberdade de ação na questão presidencial. Aliás, os renovadores dividiram-se nas eleições de 80. Desde cedo que disse que ia apoiar Eanes e assisti com os meus olhos a alguns passos de Sá Carneiro para ser candidato presidencial, coisa de que ninguém fala. Sei de quem, dentro da Aliança Democrática, arredou logo essa possibilidade, porque Sá Carneiro não conseguiu os apoios nos almoços que fez em São Bento...
O CDS não apoiou essa pretensão?
Não, nunca apoiou. Amaro da Costa, Freitas do Amaral e todos os bem casados do país.
Os renovadores elegeram...
...cinco deputados: Adão e Silva, Francisco Sousa Tavares, um sindicalista chamado Pelágio Madureira, Nuno Godinho de Matos e eu. O Barreto não foi candidato a deputado. Ambos fomos convidados para ministro dos Assuntos Sociais. Acabou com o Vasco Pulido Valente na Cultura. Fomos convidados por Sá Carneiro, mas a resposta foi imediata, porque já nos tínhamos concertado e não queríamos pastas ministeriais. A única coisa que se podia aceitar eram cargos na mesa da Assembleia. Aliás o meu nome chegou a circular para presidente da Assembleia, o que gerou grandes protestos de grande parte dos deputados da AD, que elegeram um estimável advogado de Santarém, Ribeiro de Almeida.
Gostaria de ter sido presidente da AR?
Não sei, depende das circunstâncias. Também não é um cargo de sacrifício. É de responsabilidade mas não de sacrifício. É de coroação de carreira.
Essa possibilidade voltou a colocar-se mais tarde?
Para mim? Não. Isto é como no rugby: quando se começa a correr muito, há logo uma placagem. E houve várias placagens...
Para Belém também?
Várias pessoas me disseram que podia ter sido candidato, mas nunca me passou pela cabeça organizar essa hipótese.
O seu nome é falado...
De vez em quando é falado, mas sinto-me mais vocacionado para a governação do que para um cargo em que vai haver candidatos com fartura. Portugal precisa é de governantes, de pessoas que se dediquem, que conheçam o país e o mundo. Portugal precisa é de candidatos de política autêntica e não de política da imagem. Pior que o culto da personalidade, que todos criticamos, é o culto da imagem.
Tinha perfil para primeiro-ministro
Achava-se com preparação para primeiro-ministro?
Aí há dez anos, sim. Um político tem de saber escolher as hipóteses e saber ouvir. Talvez não tivesse entrado, por exemplo, no sistema monetário europeu.
E no euro?
No euro não sei. No sistema monetário europeu, em 1992, é que não tinha entrado - foi um erro mais que evidente. Um primeiro-ministro é um homem que sabe escolher: os ministros e as políticas.
Tinha perfil para isso?
Penso que sim. Nunca pensei muito no assunto.
Primeiro teria que ser líder de um partido...
Sim, e isso nunca me interessou. Nunca o encarei como hipótese a trabalhar. Fiz sempre a minha vida sem pensar nesses altos cargos. Nunca fiz nada por isso. Preferi, por exemplo, dar uma certa dimensão à minha vida universitária, que é uma forma de ser livre.
E desempenhar um cargo internacional?
Foram-me propostos dois ou três. Diretor-geral da Comunidade Europeia, pelo António Guterres, em 1992 ou 93, na direção-geral da Cooperação. O Guterres chamou-me ao Rato e fez-me o convite. Eu pus algumas reticências, dado que tinha sido ministro dos Negócios Estrangeiros e não me parecia compatível... Respondeu-me com aquela objetividade lúdica que tinha: "Como líder da oposição estou a convidar-te para o melhor cargo que tenho para oferecer". E era. Depois disso convidou-me para a missão da Internacional Socialista para a reforma da Nações Unidas. E ainda me falou vagamente, num almoço no Conventual, na hipótese de ser embaixador da ONU - mas isso também não dependia muito dele. O que ele estava a querer dizer é: "conto contigo". Mais tarde, ao conversarmos em pé (e eu nunca aceitaria um convite que é feito em pé), falou-me na hipótese de ser ministro da República nos Açores - coisa que aceitaria, nem em pé nem sentado. Numa remodelação governamental, já quase no fim do guterrismo, constou em Belém a hipótese de ir para ministro da Defesa.
Foi no tempo do Castro Caldas?
Castro Caldas, Rui Pena... Tudo pessoal das contrapartidas. Mas nunca acreditei muito. Para simplificar: desde que saí do Governo nunca pensei propriamente em voltar.
Há um lado subterrâneo na vida dos partidos
Não deixa de ser paradoxal que o cargo mais importante que ocupou tenha sido praticamente no início da carreira. Depois disso, seria expectável algo mais...
Sim, também acho. Mas pronto... É qualquer coisa no funcionamento do sistema político ou no sistema de blocagem das personalidades. Durante anos, eu não aparecia na imprensa - aparecia só nos "entre outros". Há aqui um lado subterrâneo na vida dos partidos...
Acha que não foi devidamente reconhecido?
Não, não me queixo de nada. Levei a vida que tinha de levar. Tive muito gosto em ser deputado, sobretudo pelos Açores. Tive muito gosto em ser deputado europeu, e até em ser deputado à Assembleia Parlamentar do Conselho Europa. Vou-me queixar?! O Mendés France só foi primeiro-ministro seis meses, mas a gente não se lembra de outros primeiros-ministros franceses que lá estiveram quatro e cinco anos e não fizeram nada. É como cá. Ainda hoje, vou no táxi e o taxista diz-me: "Ah, o senhor foi ministro dos Negócios Estrangeiros". Mais vale ter sido ministro numa época importante como aquela... Há pessoas que usufruíram do regime político quando estávamos numa situação razoável e agora, que o país está numa situação difícil, afastam-se.
Está a referir-se ao António Vitorino, por exemplo?
Já não me lembro do António Vitorino... Reparem, por exemplo, nas eleições para o Parlamento Europeu de 2004. O PS teve o Sousa Franco como cabeça de lista, de quem era amigo e por quem tinha as maiores considerações. Mas o dr. Sousa Franco foi para cabeça de lista para que nenhum outro membro do PS tivesse 30 e tal por cento, é óbvio. Esvaziou-se a botija para alguém que pudesse estar à ilharga do dr. Ferro... Percebem o que quero dizer? A vida política é feita dessas coisas, que vou observando. Mas confesso que nunca perdi o sono por causa disso.
Apesar de ter sido expulso da Faculdade de Letras de Lisboa, nunca foi convidado para lá lecionar. É uma mágoa?
Acho que é uma coisa que fica mal a quem nunca o fez. Se eu soubesse que havia pessoas que tinham sido expulsas da minha universidade e se tivesse responsabilidades de gestão, certamente que teria chamado as que considerasse aptas... Fui para a Universidade Nova. Quis fazer isso para dizer que a vida política não era tudo para mim.
Foi deputado durante muitos anos, incluindo na Constituinte. Sentiu o decaimento do papel do Parlamento?
O período entre a Constituinte e 1982 exigia que os deputados fossem bons. Eles foram bons porque a época exigia que o fossem. Depois as coisas entraram numa certa rotina... Os deputados não estão lá só para fiscalizar o governo ou para fazer leis. Há muitos que estão lá para fiscalizar os outros deputados. Sei que houve épocas de maior exigência, mas, para mim, um deputado tem sempre a dignidade da seriedade do seu trabalho.
Qual foi o grande deputado com quem se cruzou?
Há vários. Vou dizer um do PSD: Carlos Encarnação. Um extraordinário deputado, capaz de inventar um argumento entre levantar-se e pôr-se de pé.
"O assassino da voz doce", como nós o conhecíamos. E do PS?
Gostei do José Magalhães. Era extraordinário a inventar argumentos.
Portugal não tem política externa há muito tempo
Fale-nos agora do PRD.
Quando foi da moção de censura, apresentada pelo PRD ao Governo de Cavaco Silva, em 1987, estive contra. Da Comissão Política do PRD, eu e o coronel Lencastre Bernardo fomos os dois únicos contra.
E o próprio Eanes.
O próprio Eanes, que, se tivesse querido opor-se, tinha-se oposto. Acho que fez mal em não se ser oposto. Eu estava muito reticente e veio uma simpática delegação do PRD aqui a casa, dizer que já tinham chegado a acordo com o PS (de Vítor Constâncio) e até com o CDS e também com o PCP, para formarem um governo alternativo. E que o PS não se opunha a que eu regressasse ao Governo - o que era um favor fantástico... Disse-lhes: "Vocês estão enganados. Esse Governo não vai existir, porque há pelo menos uma pessoa altamente colocada que o não quer, que é o Mário Soares". Embora se eu fosse o Constâncio ter-lhe-ia apresentado um Governo com maioria na Assembleia - foi um erro político que ele cometeu. Em relação a pastas, disse que não estava interessado em nenhuma, mas fiz notar que havia uma que ninguém ia querer mas que ia ser a mais importante dos anos seguintes: Obras Públicas. Era quando estavam a começar a chegar os fundos da Comunidade. Percebi logo que o país ia entrar pela linha das obras públicas, a pasta do eng. Joaquim Ferreira do Amaral. Estava escrito nas estrelas que era a pasta mais importante.
Nesse acordo com o PRD você seria o ministro dos Estrangeiros?
Nunca foi muito claro. O Governo ainda estava em formação, eu é que me adiantei. Nessa altura Portugal já não tinha política externa - só tinha diplomacia, o que escapou a muita gente. Só voltou a ter um bocadinho em 1999, e mesmo assim ao serviço dos outros - mas isso é generosidade.
Está a falar de Timor-Leste?
Sim, sim. São ações generosas, não vou falar mal.
Quando disse que o Presidente Mário Soares não aceitaria aquele Governo, é porque já sabia?
Calculava que ele não iria aceitar. Quem falhou aí foram os partidos que votaram a moção de censura - tinham que chegar ao Palácio de Belém com um Governo que tivesse maioria no Parlamento. Se o Presidente aceitava ou não, a responsabilidade política pela instabilidade era dele. Isso é que é política.
O CDS fazia parte desse Governo?
Constou-me que o prof. Adriano Moreira estava de acordo - ele é que era o líder do CDS.
E o PCP?
Daria o seu acordo parlamentar tácito. Porque, para além do PSD, não podia haver mais votos contra. O PRD apareceu já sobre o tarde.
Devia ter sido lançado mais cedo?
Devia ter sido lançado no dia seguinte à revisão constitucional de 1982.
Não à reeleição de Eanes, em 1980?
Não. À revisão constitucional, como resposta política.
A revisão de 1982 retirou poderes ao presidente?
Claro que retirou.
A sorte de termos um movimento sindical ordeiro
Foi uma revisão ad hominem?
Em grande parte foi. O general costuma dizer que foi um pacto inter-partidário contra ele (sobretudo o PS e PSD, o resto não conta). A figura a abater era o general Ramalho Eanes e aquilo que se considerava ser a presença militar no sistema político e democrático português - o que, quanto a mim, era um fantasma. Houve coisas boas na revisão, como a criação do Tribunal Constitucional, embora se pudesse ter mantido a ideia de o Presidente da República nomear alguns juízes - e talvez não houvesse estas misérias que de vez em quando se notam.
Fez a campanha eleitoral com Manuela Eanes.
Entre outras pessoas. No Portugal profundo, penso que de Castelo Branco até ao Porto. Uma coisa extraordinária, um grande sucesso.
O PRD ou a Manuela Eanes?
A Manuela Eanes também fez uma grande campanha, que acabou em Lisboa. Tenho o discurso que fiz em Lisboa, depois de me ter dado conta que havia um elemento ideológico muito forte contra Lisboa e os seus políticos. Não faço parte da cultura anti-políticos. Fiz um discurso elogiando a cidade de Lisboa como ilha de liberdade e ponto de apoio para a liberdade política e cívica em Portugal. Nessa sessão também falou o Eduardo Lourenço. Foi para marcar os limites da minha aliança com o lado de crítica à vida política.
Esses ventos sopravam sobretudo de Santarém?
Não tenho nomes a dar. Eram os homens bons da província, que existem, mas que, juntos, quando entregues a si próprios, às vezes também podem fazer as suas desgraças. A virtude não está só de um lado e o vício do outro. Até o D. João I, que vinha lá do Alentejo sem saber ler nem escrever, acabou por gostar da cidade de Lisboa. O PRD foi uma experiência que não me arrependo nada de ter feito. Tenho mais dúvidas sobre a utilidade para o país da experiência com Sá Carneiro. A formação do PRD foi um aviso muito sério ao sistema de partidos em Portugal, sobretudo ao PSD e so PS, que acabaram por responder razoavelmente. O PRD era um partido-charneira ao centro-esquerda, entre o PS e o PSD, e eu via-me bem a fazer esse papel. Diferente é a situação nos tempos que correm, em que é desejável um governo de esquerda, que ajude a mudar o paradigma, gradualmente. Um Governo reformista, responsável, bem assente em sindicatos ordeiros. A sorte que nós temos, em ter um movimento sindical ordeiro! Estamos a desperdiçá-la! Duas centrais sindicais, cada uma à sua maneira, com um belo serviço de ordem!
Mas houve um acordo de concertação há bem pouco tempo.
Um acordo virtual, que o próprio João Proença se vê aflito a fazer de contas que existe. O Bloco poderia ser um partido charneira, desde que aceitasse o custo e o preço de responsabilidades governativas. Qual é o vício do Bloco de Esquerda? É que não quer responsabilidades governamentais. O pior que pode acontecer na vida política é não saber o papel que se está a desempenhar. Como Portugal perante os alargamentos a Leste: a política externa portuguesa não quis perceber o que estava a acontecer. "Maria vai com as outras", ponto final. Não houve uma política digna desse nome.
Durão Barroso faz carreira com os próprios erros
Mas o alargamento a Leste fazia parte dos ventos da história.
Os ventos da história são o contrário da política. Os estados têm de ter políticas, sabendo que há os ventos da história. Uma coisa foi a reunificação da Alemanha, outra foram os alargamentos a Leste, e outra ainda o ritmo desse alargamento. O papel de muitos Estados deveria ter sido, não impedir a entrada - mas retardar e organizar a entrada desses países. Portugal não tem política externa. Às vezes mandamos uma fragata até ao Golfo da Guiné, mas a gente sabe que é para regressar - ao menos fez-se um exercício naval. Durante muitos anos só tivemos diplomacia. Os nossos diplomatas são excelentes, a nossa política externa é rotineira e banal.
Jaime Gama incluído?
Banal desde o João de Deus Pinheiro. Durão Barroso tem tido um mérito: fazer carreira com os seus próprios erros. Tem feito imensos erros em política externa. Bicesse é um erro clamoroso.
Um erro?
Então não é? Bicesse foi executado? A guerra do Iraque foi outro erro clamoroso. Barroso faz o máximo do métier político no seu sentido mais perverso: a pessoa erra e prossegue. Os erros ajudam à carreira política, trazem cumplicidades e apoios. Fantástico!
Ou seja: anda à chuva e não se molha.
Mesmo que se molhe, vem depois o sol e... Veja Bicesse. Em 1991/92 nós éramos um Estado. Em 1975 não sei se éramos ou não um Estado, mas isso não impediu de haver tanta gente a criticar os acordos de Alvor, por não terem sido executados. E há tão pouca gente a criticar os acordos de Bicesse, que também não foram executados e cujo número de mortos está aí...
Marcelo Rebelo de Sousa gasta os entrevistadores todos
E ainda poderemos vir a ter Durão Barroso como Presidente da República.
Será certamente candidato, com as bandeirinhas da União Europeia atrás. O prof. Marcelo Rebelo de Sousa optou pela televisão. Gasta os entrevistadores todos, já vai no quarto, e agora vai ter que ficar lá no estúdio.
E tem a Fundação de Bragança.
O que, para um republicano, não deixa de ter a sua graça. Ele afirma-se republicano