Vojislav Kostunica, primeiro-ministro de Belgrado, lança o alerta

"Não nos ficaremos a rir para quem nos roubar o Kosovo"

21 julho 2007 0:00

21 julho 2007 0:00

Vojislav Kostunica, 63 anos, formado em direito, chefia desde Março passado o segundo Governo de coligação da era pós-Milosevic, dominado por partidos pró-europeus. Numa curta visita de um dia a Lisboa, na passada segunda-feira, reuniu-se com o chefe de Estado Cavaco Silva, o primeiro-ministro José Sócrates e o presidente da Assembleia da República, Jaime Gama. Depois partiu para a Alemanha. Um tema dominou as conversas: Kosovo.

Apesar disso, o actual processo de aproximação a Bruxelas poderá conhecer novo período de turbulência devido à questão do Kosovo. Para Belgrado, a independência da província do Sul com maioria albanesa, protectorado internacional desde 1999, está fora de questão, mesmo que tal implique “romper laços” com alguns países ocidentais.

O conteúdo do relatório final de Martti Ahtisaari sobre o estatuto final do Kosovo apresentado em Março passado na ONU, já foi alterado por cinco vezes no Conselho de Segurança. Qual a sua posição face esta última proposta, que retira o termo "independência", sugere o reinício das conversações directas Belgrado-Pristina durante 120 dias e não prevê, em caso de novo fracasso negocial a aplicação automática do "plano Ahtisaari" de "independência supervisionada"?
Em diversas ocasiões já foi afirmado que esta é a última hipótese, o último esforço para tentar um acordo no Conselho de Segurança da ONU sobre a resolução. Já se perdeu muito tempo e isso também é estranho. Desde o início, os países que insistem na proposta de Ahtisaari argumentavam que não se devia perder tempo, que o tempo era precioso, que se deveriam impor limites temporais para encontrar a solução para o Kosovo. Isso é errado. Para resolver o problema é importante, em primeiro lugar, encontrar a solução apropriada, seja mais cedo ou mais tarde. Quando chegamos a esta quinta proposta de resolução do Conselho de Segurança, receio que diversas objecções da Sérvia e de outros países, como a Rússia, não tenham sido consideradas.

Que objecções?
Primeiro, a Carta da ONU e o princípio da soberania e integridade territorial de todos os actuais Estados. E neste aspecto, a Sérvia não pode constituir uma excepção. Na prática, e falando em números, significaria retirar à Sérvia 15 por cento do seu território à revelia da Carta da ONU, de resoluções do Conselho de Segurança, para além de ser uma decisão que contradiz a Acta Final de Helsínquia. Devo dizer algo que considero muito importante para a opinião pública portuguesa: A Sérvia adoptou uma nova Constituição democrática em Outubro de 2006 e não foi apenas aprovada pelo Parlamento sérvio mas também num referendo onde participaram mais de 50 por cento dos eleitores inscritos. E no preâmbulo dessa Constituição refere-se que o Kosovo é parte integrante da Sérvia. A solução sobre o futuro estatuto do Kosovo deve ser encontrada na base de um compromisso que satisfaça Belgrado e Pristina. As resoluções apresentadas até agora e incluindo a quinta, a mais recente, nunca tiveram em consideração esse princípio de compromisso. Colocam-se de um dos lados, do lado albanês, de Pristina, e praticamente só consideram a proposta albanesa, um Kosovo independente.

O embaixador dos EUA na ONU, Zalmay Khalilzad, referiu recentemente a intenção de "seguir em frente" no Conselho de Segurança, ou fora dele, caso não resultem as negociações directas previstas no quinto projecto de resolução. Na sua perspectiva, porque existe esta urgência?
Não sei Tudo começou de forma errada desde o início e não tem sido possível melhorar a situação. Penso que essa urgência pode ser explicada por outros compromissos norte-americanos pelo mundo, e o interesse em resolver um problema sobre o qual os norte-americanos não estão particularmente informados. Por isso, penso que será a Europa, e neste momento Portugal enquanto país que preside à União Europeia [UE], que poderão desempenhar uma função muito importante na busca de uma solução adequada para o Kosovo. E isso significaria prescindir da nova resolução do Conselho de Segurança (invalida a resolução 1244 de Junho de 1999), colocando em causa ou sabotando a ideia de integridade territorial e soberania do Estado da Sérvia.

A liderança albanesa kosovar já prometeu que não vai declarar a independência unilateral do Kosovo, mas teme-se um agravamento da situação no terreno...
O mais forte argumento contra a declaração unilateral da independência do Kosovo menciona a possibilidade ou a ameaça de violência no Kosovo. Mas tal não deve ser tido em consideração, é necessária uma solução. Registou-se muita violência no Kosovo desde a chegada da Unmik e da Kfor em Junho de 1999, para além do anterior bombardeamento da Sérvia, e neste aspecto importa recordar que apenas alguns políticos participaram activamente no que então foi designado por 'intervenção humanitária'. De facto, tratou-se de proteger a população albanesa e fazer regressar os que tinham abandonado o Kosovo. Mas entretanto, ocorreram inúmeros casos de violência contra os sérvios do Kosovo, uma situação muito instável, ausência de liberdade de movimentos. O facto de muita população sérvia ainda não ter regressado ao Kosovo significa que, na prática, a resolução 1244 não foi aplicada no que diz respeito aos direitos humanos, e a outras matérias. Mas alguém está com pressa. Seguindo por essa direcção, diria então que se estaria a construir, a fazer, a formar, um segundo Estado albanês e em território da Sérvia. Em alternativa, deveremos procurar diversas formas de autonomia, um elevado grau de autonomia que, em comparação com a proposta de Ahtisaari de 'independência supervisionada', designamos por 'autonomia supervisionada'. O que significa presença internacional e a possibilidade de os albaneses possuírem total liberdade para escolher o seu futuro. Uma autoridade quase total, à excepção das preocupações de Belgrado face à população sérvia local, a preservação da sua herança religiosa e cultural na região e a preservação da integridade territorial. Assim, por um lado os albaneses decidiriam sobre todas as questões importantes, enquanto Belgrado manteria a integridade territorial de acordo com a resolução 1244. Esse seria o único compromisso, de acordo com a Carta da ONU. Obviamente que surgirão consequências nas nossas relações com os países vizinhos e com os países que decidam reconhecer essa independência

O sentimento generalizado sobre a inevitabilidade da independência do Kosovo não está já a colocar problemas acrescidos ao seu Governo?
Para nós é inaceitável. Quando alguém se refere a essa inevitabilidade, poderia ter sucedido há dois anos, o que não aconteceu. Penso ser positivo o facto de os europeus estarem a aperceber-se da dificuldade deste problema. Na Europa e no mundo está-se a verificar que o Kosovo não é um caso sui generis, não é um caso específico, não é algo que sucedeu uma vez, para nunca mais acontecer. É um disparate. No momento em que o Kosovo se tornar independente vamos assistir a muitos Kosovos por todo o mundo, incluindo na Europa.

Belgrado tem insistido em separar a questão do Kosovo do processo de aproximação à UE. No entanto, o ministro dos Negócios Estrangeiros francês já referiu que a integração da Sérvia na Europa será impossível enquanto não for solucionada a questão do Kosovo.
As questões estão relacionadas mas não da forma entendida pelo ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Bernard Kouchner. O que Kouchner diz em público não é repetido por outros ministros dos Negócios Estrangeiros ou responsáveis oficiais na Europa. O que Kouchner disse pode ser considerado uma espécie de chantagem. Faz-nos recordar as declarações de Richard Holbrooke [enviado especial do ex-Presidente dos EUA Bill Clinton para os Balcãs e ex-secretário de Estado-adjunto para os Assuntos Europeus], que muito contribuíram para a instabilidade na região. Apresentadas na sua forma mais simples, as ideias de Holbrooke diziam, 'se querem a Europa podem esquecer o Kosovo, se querem o Kosovo podem esquecer a Europa'. Esta ideia de condicionar ou chantagear a Sérvia é totalmente inaceitável. A nossa posição é totalmente diversa: se a Sérvia iniciou o processo de negociações com a UE para um Acordo de Associação e Estabilização (AEA) isso significa que a Europa respeita totalmente a Sérvia como um todo, como uma entidade e em toda a dimensão da sua integridade territorial. Esse foi o processo que se iniciou, esperamos que a Europa preste tributo a esse facto.

Sobre a presidência portuguesa da UE, pensa que um país de "dimensão média" pode promover outro género de abordagem?
Sim, é basicamente a nossa ideia. Decidimos deslocar-nos a Lisboa não apenas pelo facto de Portugal dirigir actualmente a presidência semestral da UE, mas por ser um pequeno país, com uma população semelhante à da Sérvia, e também comparável em muitos outros aspectos culturais e de valores. Por isso, temos a percepção sobre a necessidade de encontrar um verdadeiro compromisso entre as duas posições. E de evitar algo que decerto seria mais do que um perigoso precedente. Em muitos países do mundo aguarda-se a independência do Kosovo para repetir a mesma situação. E não me refiro à situação na região – existe um Estado albanês – onde após a eventual decisão sobre a independência os albaneses teriam o privilégio de garantir dois Estados. Não existe uma única nação nos Balcãs que possua dois Estados, e caso sucedesse esse cenário não tardaria a surgir um terceiro Estado albanês, aquilo a que se chama na região a 'Grande Albânia'.

Num cenário de forte pressão internacional para a concessão da independência ao Kosovo, e de um consequente reconhecimento internacional por parte de países decisivos, estará a Sérvia preparada para um novo período de isolamento?
Não é uma questão de isolamento, é uma questão de reacção normal de alguém que está a ser privado de algo que lhe pertence, de acordo com os princípios da lei internacional. Contudo, a situação é difícil mas devo dizer que permaneço optimista. Mas se ocorrer a independência do Kosovo, alguns laços, algumas relações poderão ser postas em causa. Não é isolamento, antes a reacção normal de qualquer ser humano, de qualquer Estado, uma espécie de dignidade chamada integridade territorial física. Não existe um único argumento histórico, anteriormente existiram tensões, conflitos, a pressão das autoridades sérvias sobre os albaneses. Isso foi algo que sucedeu há alguns anos mas entretanto foi alterado, Belgrado tem actualmente dirigentes democráticos.

Mas neste momento são possíveis diversos cenários, incluindo a declaração unilateral de independência pelos albaneses e o reconhecimento pelos EUA e UE. Que faria a Sérvia perante essa situação?
Devo dizer em primeiro lugar que, em relação ao passado recente, desde as alterações em Outubro de 2000 [abandono do poder por Slobodan Milosevic], a Sérvia contribuiu para a paz e estabilidade na região, promoveu relações com os seus vizinhos. Por outro lado, temos de encontrar a forma de reagir e responder a uma eventual e ilegítima independência, que também contraria a nossa Constituição. Essa situação poria em causa as relações da Sérvia com alguns países, pioraria os laços com alguns países. Como pode a Sérvia rir-se e seguir em frente, melhorar relações com países que, de facto, lhe roubaram parte do seu território? Porque trata-se de roubar a Sérvia, contra a Carta das Nações Unidas, é um acto de roubo e a Sérvia tem de ter isso em consideração. Não pode continuar a rir-se e referir que o mais importante para nós é o futuro europeu, a perspectiva europeia, e coisas do género. O objectivo consiste em preservar a sua integridade, a dignidade.

Estará excluído um novo conflito militar?
Em toda esta situação que a Sérvia tem tentado evitar por todos os meios qualquer espécie de conflito, e isso continuará a ser no futuro uma das principais características do nosso comportamento político. Comportar-nos-emos dessa forma.

Pode perspectivar-se um afastamento da Sérvia do Ocidente, da EU, e o reforço dos seus laços com a Rússia? E neste aspecto, considera que a Rússia vai manter a sua posição de princípio no Conselho de Segurança e vetar qualquer resolução sobre o Kosovo que não tenha a concordância de Belgrado?
A posição não foi alterada até ao momento, e a Rússia tem sido muito firme e muito forte no propósito de respeitar a Carta da ONU e o princípio da integridade territorial de um Estado soberano. Essa posição não foi alterada até ao momento e estou seguro que não vai ser alterada. Por outro lado, não gosto de pensar no que pode vir a suceder. Para já, vamos concentrar-nos nestes últimos esforços para apoiar as negociações, mas não negociações que estejam decididas previamente, onde o seu desfecho aponte para a independência do Kosovo. Vamos encontrar soluções de compromisso. Esta é a ideia básica. Porque motivo o pessimismo e o fatalismo deve prevalecer neste momento? Sei que os russos não vão participar num processo que nos retire parte do nosso território, e sei que os europeus, particularmente alguns países europeus, estão sob uma fortíssima pressão dos Estados Unidos para despojarem a Sérvia de um território que lhe pertence. Neste momento, a Rússia não é um perigo para a Sérvia, mas muitos outros países estão a ameaçar a Sérvia, quando decidem privá-la de parte do seu território e ao apoiarem os argumentos do extremismo e terrorismo albanês no Kosovo.

A Rússia vai assim manter esta sua posição de princípio no Conselho de Segurança?
Sim, sim, é de facto uma questão de princípio.

Bruxelas anunciou o recomeço das negociações sobre um Acordo de Estabilização e Associação com a Sérvia (AEA), após ter detectado um reforço da cooperação de Belgrado com o Tribunal de Haia para os crimes de guerra na ex-Jugoslávia (TPIJ). Essas condições vão manter-se?
Penso que foi errado interromper as negociações sobre o AEA na Primavera de 2006. Teria sido melhor deixar a Sérvia seguir o seu caminho e, quando se chegasse ao fim da estrada, ajuizar se todas as obrigações relacionadas com o tribunal de Haia tinham sido cumpridas. Foi errado, e uma vez mais a Sérvia foi tratada como se nada tivesse acontecido no país. Mas mudaram muitas coisas!

Quais os motivos pelos quais a Sérvia continua a ser "maltratada", como afirmou?
Talvez algumas das respostas estejam relacionadas com essa espécie de pressão que é necessária quando se aproximam as decisões relacionadas com o futuro estatuto do Kosovo. E muitas outras coisas. Não devemos ser ingénuos ao ponto de não associar estes factos. E isso é algo sobre o que também devem pensar os nossos parceiros ocidentais. Como estão a lidar com o caso do Kosovo, como estão a lidar com a Sérvia quando de trata de negociações e, na UE, como estão a lidar com a Sérvia quando de trata da cooperação com o TPIJ.

Versão integral da entrevista publicada na edição do Expresso de 21 de Julho de 2007, 1.º Caderno, página 31.