30 dezembro 2006 1:30
A antiga Mesopotâmia, a «terra entre rios» onde fica hoje o Iraque, foi o berço de uma civilização notável. De terra bíblica a farol do mundo árabe, suscitou cobiças e viveu sob vários impérios
30 dezembro 2006 1:30
É o país das Mil e Uma Noites, das lendas de sultões, califas e haréns, da mítica Babilónia, que chegou a ser a cidade mais importante do Mundo, da legendária Bagdade, que foi capital de um império que se estendeu desde a Índia até à Península Ibérica.
Segundo a lenda, era nessa zona do globo que se situava o Éden e a árvore do fruto proibido - uma árvore velha e seca que se ergue em Kurna, o povoado onde confluem o Tigre e o Eufrates, perto de Bassora. É também nessa região que se encontram as ruínas de Ur que a Bíblia diz ser a primeira cidade do Mundo , onde terá nascido Abraão, onde Noé terá construído a sua arca, onde se terá registado o Dilúvio.
Em suma, é no território onde se situa hoje o Iraque que a maioria dos historiadores situa o «berço da Civilização», há cerca de nove mil anos. Quem não se lembra de ter aprendido nos bancos de escola que os escritos mais antigos encontrados até hoje são os famosos códigos de Hamurabi, gravados em pedaços de argila?
Lendas à parte, foi na Mesopotâmia (do grego «meso» e «pótamos», entre rios), a região entre os rios Tigre e Eufrates o também chamado Crescente Fértil que o homem aprendeu a cultivar a terra, a domesticar os animais, a construir cidades, a ditar leis, registadas no barro em escrita cuneiforme, na qual os fenícios se inspirariam mais tarde para inventar o alfabeto.
Com as primeiras instalações sumérias - os antecessores remotos dos iraquianos na Mesopotâmia, que abarcava partes do território composto actualmente pelo Irão e pelo Iraque, surgiram as primeiras formas de organização da sociedade e as bases do pensamento filosófico actual.
Vinte e sete séculos depois de ter sido o «berço civilizacional», a região onde teria sido outrora o Paraíso está prestes a transformar-se num inferno, por aí ter medrado entretanto um estado-pária dirigido por um líder-pária, que a América e parte do Mundo querem apear em nome do Bem.
Desde há milénios que a «terra entre dois rios» tem sido palco da ascensão e queda de poderosos impérios, de batalhas, alianças, divisões e conquistas, por sumérios, caldeus, babilónios, assírios, persas, fenícios, gregos, árabes, mongóis, turcos otomanos.
Com a dinastia dos Omíadas, o Islão expandiu-se até à Ásia Menor, Índia, norte de África e Península Ibérica, que no ano de 716 estava praticamente na mão dos muçulmanos. Com o derrube dos Omíadas pelos Abássidas, a capital do império islâmico foi transferida de Damasco para Bagdade, fundada em 762 na margem ocidental do rio Tigre. O último sobrevivente da dinastia Omíada refugiou-se no Al-Andalus, o nome que os árabes davam à Ibéria. Mais tarde, 150 anos depois, o seu sucessor proclamou-se califa, tendo como capital Córdova, e declarando-se rival do outro centro do islamismo, Bagdade. Foi o início da desagregação da «umma» (nação islâmica), período durante o qual se multiplicarão os «reinos das taifas».
Na Península Ibérica foram os tempos dourados do Al Andalus, que mais tarde ficou reduzido ao sul da actual Espanha e que permaneceu sob domínio muçulmano até 1492.
Por essa altura já estava em movimento nova vaga expansionista muçulmana, desta vez protagonizada pelos turcos otomanos, que depois avançariam pela Europa através dos Balcãs, chegando às portas de Viena. Na região da Mesopotânia, o domínio otomano estender-se-ia até à Primeira Guerra Mundial, altura em que a sua derrota mudou a ordem existente em toda a região. Grande parte das convulsões político-geográficas que abalam ainda hoje o Médio Oriente nasceram precisamente nessa altura, com a criação de novos países e estabelecimento de fronteiras por vezes a régua e esquadro - pelas potências ocidentais.
Os árabes tinham ajudado os britânicos a repelir os turcos do Hedjaz (na actual Arábia Saudita), da Palestina e da Síria. Em troca, Londres prometera a independência de dois reinos árabes: um na Península Arábica, sob a direcção de Hussein, xerife de Meca e do Hedjaz (governados pela sua dinastia desde o século X), outro no Levante, com capital em Damasco e sob a batuta de Faisal, um dos filhos de Hussein. Era o tempo do oficial britânico que ficaria conhecido como Lawrence da Arábia e que acabou por se tornar um nacionalista árabe.
Mas os britânicos preocuparam-se pouco em honrar os compromissos. Por um lado, fizeram um acordo secreto com os franceses (acordo Sykes-Picot, de 1916) para a partilha da região: Londres ficava com o Iraque e a Palestina (território que englobava os actuais Israel, Cisjordânia e Jordânia) e Paris com o Líbano e a Síria.
Por outro, o então chefe da diplomacia britânica, Lord Balfour, enviava um ano depois uma carta ao barão de Rothschild, prometendo favorecer o estabelecimento de um «lar nacional judeu» na Palestina. O documento ficou conhecido como «declaração Balfour» e estaria na génese da criação de Israel, em 1948.
Com o fim da guerra, o Conselho Supremo Aliado acabou por confiar, em 1920, os mandatos do Iraque e Palestina à Grã-Bretanha e do Líbano e Síria à França, países que se apressaram a traçar novas fronteiras e a instalar no poder famílias reais «amigas».
Um dos novos Estados, criado em 1922, era o Iraque «a bem plantada», em árabe , cujo trono foi atribuído a Faisal, recuperado pelos ingleses depois de ter sido expulso de Damasco, onde já tinha sido proclamado Rei da Grande Síria sem esperar pela «bênção» francesa. Em Amã, os ingleses colocavam entretanto o irmão de Faisal, Abdalah, bisavô do actual Rei da Jordânia. Quanto ao pai de ambos, Hussein, xerife de Meca os britânicos limitaram-se a assistir à conquista do seu território pelas tropas de Ibn Saud, emir do Nedj (a província oriental da Arábia Saudita) e avô do actual soberano saudita escorado na facção wahabita, a mais radical do Islão.
Os britânicos prosseguiam assim a política, iniciada no século XVIII, de criação de entrepostos comerciais e estabelecimento de alianças estratégicas para consolidar a sua «rota da Índia».
A história do Iraque está ligada a essa política. As suas fronteiras (como as da Arábia Saudita e do Koweit) foram definidas em 1922, na conferência de Uqair, pelo então alto-comissário britânico em Bagdade, Sir Percy Cox. O Iraque ficou praticamente sem acesso ao mar, para que a influência britânica na região e a sua «rota das Índias» não fossem mais tarde postas em perigo. E a questão do acesso ao golfo pérsico-arábico continuaria bem viva até hoje foi ela que esteve na origem da guerra Irão-Iraque e também ajuda a explicar a invasão do Koweit.
Nove mil anos depois da Babilónia, dificilmente o centro do mundo voltará a situar-se no Iraque. E, onze anos após a primeira Guerra do Golfo, também dificilmente Bagdade voltará a ser o centro do mundo árabe. Nos tijolos utilizados na reconstrução daquela cidade mítica da Antiguidade foi inscrito o dizer «reconstruída na era de Saddam Hussein». Tal como o antigo rei babilónico que tinha por divisa «que tudo o que a minha mão fez fique para a eternidade» também o actual líder da região quer gravar o seu nome na História como o Nabucodonosor do século XX.
Mas o seu sonho parece estar prestes a chegar ao fim. A era do «cavaleiro da Nação árabe», o «dirigente-combatente» ou «a luz dos nossos dias» alguns dos epítetos por que é designado no seu país está a acabar. O jovem revolucionário que em 1968 tomou o poder imbuído da ideologia «baasista» (do partido Baas - Renascimento, em árabe), cujo edifício doutrinário assenta no nacionalismo árabe e num peculiar «socialismo» excluindo os conceitos ocidentais de liberdade, democracia e parlamentarismo, ficará certamente na História, mas não como um moderno rei da antiga Babilónia.
Os grandes retratos em que surge a cavalo, de turbante ao vento, emulando o herói árabe Saladino que em 1187 venceu os cruzados em Jerusalém estão quase a ser derrubados.