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A pessoa de Pessoa

14 dezembro 2012 12:01

Clara Ferreira Alves (www.expresso.pt)

Depois do sucesso em São Paulo e no Rio de Janeiro, a extraordinária exposição "Fernando Pessoa, Plural Como o Universo" chegou finalmente a Portugal.

14 dezembro 2012 12:01

Clara Ferreira Alves (www.expresso.pt)

Talvez tenha chegado o momento de os portugueses encontrarem o verdadeiro Fernando Pessoa. Não o poeta maldito das orações noturnas e dos cafés, o solitário transeunte da Baixa, o amante do Tejo, o escriba da rua dos Douradores, o patriótico autor da "Mensagem", o inventor de heterónimos, a silhueta esguia dos ícones sagrados. E sim a pessoa de Pessoa narrada por ele mesmo. O homem, a obra, consoante as idades do homem, explicado em milhares de palavras escritas e pensadas, em fragmentos poéticos, em prosas e manifestos, em letras como desenhos e rabiscos, em assinaturas múltiplas.

Fernando Pessoa, Plural como o Universo é uma exposição que permite este encontro. Concebida para ser originalmente exibida no Museu de Língua Portuguesa, São Paulo, Brasil, em agosto de 2010, inaugurou esta semana na Fundação Gulbenkian. A conceção foi da Fundação Roberto Marinho, a realização da Fundação Gulbenkian, e o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e da Casa Fernando Pessoa.

A Gulbenkian foi também uma das patrocinadoras da exposição. Os curadores escolhidos foram dois pessoanos, Carlos Felipe Moisés no Brasil, Richard Zenith em Portugal.

No Brasil, teve 400 mil espectadores, 200 mil no Rio de Janeiro e 200 mil em São Paulo. Em Lisboa, estará durante trêsmeses na Fundação Gulbenkian.

O mote da exposição é, justamente, a pluralidade de Fernando Pessoa, numa cenografia concebida por Hélio Eichbauer que joga com essa pluralidade através de efeitos visuais, de objetos a três dimensões e de painéis onde os retratos melancólicos de Pessoa parecem caminhar dentro da sala. A principal dificuldade de organizar uma exposição, qualquer exposição, sobre Pessoa é a de dar a ver uma personalidade tão singular e tão múltipla através da palavra.

Dar a ler o texto pessoano sem massacrar o leitor com amultiplicidade das personagens pessoanas e a multiplicidade dos autores de texto pessoano. Se a heteronímia coloca dificuldades de acesso a Pessoa, solicitando a multiplicidade do leitor, o desdobramento da sua emoção, inteligência e sensibilidade, a heteronímia exposta como uma aberração da alma poderia contribuir ainda mais para a acumulação de lugares-comuns e mitos românticos sobre Pessoa que ocultam aquela identidade plural, a única que ele teve.

Zenith e Moisés conseguiram, na ótima seleção de textos e na apresentação gráfica, catalogação e cronologia, evitar as citações da vulgata. Só o conhecimento da vida e da obra do poeta (e Zenith é um dos peritos sobre os textos autobiográficos de Pessoa) permite uma seleção que vai buscar à 'arca' simbólica que é a obra de Fernando António Nogueira Pessoa tudo o que possa dar a ver os talentos vários do rapazinho que inventou a primeira personagem, o Chevalier de Pas, por volta dos seis anos de idade.

E vemo-lo a inventar esse cavaleiro de coisa nenhuma que dá os primeiros passos (pas, em francês: nada, passo) numa existência em busca perpétua, em perpétuo desassossego. Em francês? Com aquela idade, começando a escrever-se, Pessoa falava francês, a língua culta do tempo, com a mãe, e escreveu poesia em francês, o que dilata o Pessoa bilingue, português e inglês, para o Pessoa trilingue. Alexander Search, autor inventado aos 11 anos, é já uma criatura que como o seu criador se expressa em língua inglesa. Pessoa estava em Durban, província britânica do Natal, a ser educado pelos ingleses. O pai morrera e a mãe casara com o cônsul de Portugal no Natal,mudando a família para lá. Pessoa só regressaria a Lisboa e ao largo de São Carlos, ao sino da sua infância no largo de São Carlos, depois de regressar de África aos 17 anos. Foi a última viagem que fez, porque Lisboa, revisited, se converteria no seu lar, assombrando-lhe as ruas. A frase é de Bernardo Soares, o semi-heterónimo, o mais próximo de Pessoa.

O mais viajado dos heterónimos foi Álvaro de Campos, o homem que vagueava por uma Inglaterra que para Pessoa era sobretudo território mental e língua material.

Pessoa não seria Pessoa, múltiplo e plural, sem esta viagem por entre duas línguas, onde uma, mais geométrica e rigorosa, disciplina as sinuosidades e ornamentos da outra. Se o Pessoa moderno é de Cesário Verde na libertação da língua portuguesa da retórica fradesca, é também o filho de Shakespeare e deMilton, de Byron e de Tennyson, de Poe e Carlyle.

A primeira sala da exposição é a do encontro com o texto pessoano e com Fernando Pessoa, rodeado de Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Bernardo Soares, além de personagens menos conhecidas como AntónioMora, Raphael Baldaya ou o Barão de Teive. Painéis interativos permitem folhear os versos, os fragmentos, observar partículas elementares do cosmos pessoano. A modernidade deste texto, a contemporaneidade deste pensamento, demonstram como um autor universal nunca chega a datar, nunca passa de moda, nunca deixa de fazer sentido. As preocupações de Pessoa com o seu tempo e o homem desse tempo ecoam as nossas preocupações, a nossa angústia, a nossa perplexidade.

Muitos destas palavras poderiam servir de espelho à crise contemporânea, e a um país de desalento e desatenção. Um país que tem medo da lucidez.

"Para que um homem possa ser distintivamente e absolutamente moral, tem que ser um pouco estú- pido. Para que um homem possa ser absolutamente intelectual tem que ser um pouco imoral. Não sei que jogo ou ironia das coisas condena o homem à impossibilidade desta dualidade em grande. Por meu mal, ela dá-se em mim. Não foi o excesso de uma qualidade mas o excesso de duas, que me matou para a vida", Barão de Teive em "A educação do estóico".

Se Pessoa nunca se reviu na mediocridade do seu tempo, e se a sua natureza íntima era a da solidão que serve a criação e despreza a companhia do rebanho - a existência destinava-se a criar e não a procriar - isso não o impediu de perceber o que o rodeava. Com a exceção do grupo dos modernistas e dos espíritos livres, a ilustríssima gente do "Orpheu" e afins, Pessoa sempre esteve sozinho, matraqueando palavras a lápis, a caneta, na máquina de escrever, deixando palavras e todas as superfícies lisas que passavam perto das mãos e da sua inquietude.

"Um amigo íntimo é algo que nunca terei." Como não teve um amor. Ofélia era ainda uma criação intelectual, uma projeção mental de uma história de amor. Enfim, uma Ofélia como a do Hamlet, destinada ao amor não correspondido.

Numa das paredes da exposição, com a cronologia e biografia ilustrada, podemos ver este caminho de um protoexistencialista em escolha permanente, a marcha de uma vida onde as datas são outras tantas personagens inventadas, marcos de um passeio começado no largo de São Carlos em 13 de junho de 1888 e que acabou em 30 de novembro de 1935, no Hospital de São Luís dos Franceses, ao Bairro Alto, num quarto branco e vazio. Morto, ali jaz o menino de sua mãe. "Possivelmente, de pancreatite aguda." Sem sintaxe, diria ele, não há emoção duradoura, mas talvez possamos por um instante imaginar a dor desta lucidez afogada em "flagrante delitro", como escreveu no retrato que enviou a Ofélia, a decilitrar no Abel Pereira da Fonseca, com um fundo de garrafas de vinho. O bagaço foi o ópio romântico deste realista.

Sem a cronologia, que mostra um homem que em apenas 47 anos de vida inventou uma nova literatura, não podemos tentar compreender Pessoa.

"Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de gênio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?" Pessoa inventou quase uma centena de personagens, de autores, com os quais conviveu.

Em certos momentos, no mesmo dia, na mesma hora. Um dos originais do espólio mostra como no mesmo dia Pessoa e as criaturas de Pessoa escreviam na mesma folha de papel obras diferentes, com assinaturas diferentes. Não há, em toda a história da literatura, um feito igual.

As datas, os lugares, e as pessoas com quem Pessoa se cruzou, em Lisboa ou em Durban, são peças do retábulo pessoano. O belíssimo retrato que Almada Negreiros pintou, um deles, o de 1967, está presente na Gulbenkian, acompanhado por uma vista de Lisboa de Carlos Botelho, visto ser a Fundação a proprietária das telas. O outro retrato, dez anos anterior, de 1957, está na Casa Fernando Pessoa. São mais do que uma tela, são a entrada para o outro lado do espelho, o convite à aventura no país das maravilhas, onde todas as coisas "têm uma ninfa cativa ou uma dríade apanhada pelo olhar." Um exercício simples: Pessoa no meio de nós, ou seja, Pessoa vivo, hoje. Como seria? Podemos ter uma ideia. A exposição mostra a sua atitude perante a perseguição moralista a António Botto, o autor homossexual de "As Canções", livro apreendido, e a Raul Leal, também ele defensor de Botto e autor do manifesto "Sodoma Divinisada". Numa linguagem de guerrilha Pessoa ataca um reacionário Manifesto dos Estudantes de Lisboa: "Moços, cuja intelligência deveria ser, não por certo disciplinada, porem álacre e desperta, rastejam assim na imbecilidade." É o menor dos insultos dirigidos a este grupo de "sórdidos estudantes" que se sente molestado pela liberdade sexual e intelectual de escritores. Raul Leal chama-lhes "refinadíssimos pulhas", "theotónios de merda que merecem que se lhes escarre no focinho." E por aqui se vê que nem Pessoa navegava no etéreo, afastado de toda a realidade social, nem a polémica estava amordaçada. Também por aqui se vê a modernidade dos modernos, na sua recusa do dogma, da ortodoxia e da complacência.

Creio que Pessoa, hoje, vivo, teria amesma atitude combativa perante as verdades feitas. A sua cabeça não era do princípio do século XX. Era a cabeça intemporal e universal dos homens que contêm multidões, como Walt Whitman, o mestre. Dois filmes são projetados em simultâneo, paisagens do salgado mar pessoano e pessoas onde cabe inteiro Pessoa caminhando numa rua de São Paulo.

O grande fingidor sabia, como escreveu o Campos, que "estar é ser. Fingir é conhecer-se". Não será possível compreender inteiramente Pessoa que, como diz Eduardo Lourenço, é da ordem do prodígio - o nosso Mozart - mas será possível vê-lo neste labirinto de espelhos de uma obra onde se refletiu a sua pluralidade e se reflete a nossa. Ele não é, nas humanas dúvidas que teve, diferente de nós. Nem foi um génio maldito e intocável. Revemo-lo aqui menino, adolescente, adulto, imaginando mais do que seria razoável e saudável. Um adulto elegante e com sentido de humor, inventor de um tal Gaudêncio Nabos, tão divertido como umdos ridículos tipos queirosianos.

Na última frase que escreveu sente-se a curiosidade do estudante de Durban. "I know not what tomorrow will bring."

Texto publicado na revista Atual de 11 de fevereiro de 2012