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Michael Czaja, especialista em fogos: “É impressionante a quantidade de pequenas propriedades em Portugal e a ausência dos proprietários”

Michael Czaja, especialista em fogos: “É impressionante a quantidade de pequenas propriedades em Portugal e a ausência dos proprietários”
NUNO BOTELHO

Durante um mês, o especialista americano visitou 19 pontos fulcrais – entre Chaves a Faro – e falou com três dezenas de representantes de entidades diferentes – para se inteirar do que se fez em Portugal nos últimos cinco anos para montar um sistema integrado de fogos rurais que reduza o risco de acontecer outra tragédia como a de 2017. Esta terça-feira apresentou as suas recomendações, entre as quais “facilitar fontes alternativas de financiamento” para a gestão da paisagem, “promover a articulação entre entidades” e “gerir expectativas”. E falou com o Expresso sobre elas

Michael Czaja, especialista em fogos: “É impressionante a quantidade de pequenas propriedades em Portugal e a ausência dos proprietários”

Carla Tomás

Jornalista

Uma fotografia com duas casas isoladas no meio rural, rodeadas de mato e floresta, no concelho de Silves, ilustra o que o especialista em gestão de fogos rurais e investigador na Universidade Estatal do Colorado (EUA), Michael Czaja, diz ser “o grande desafio” para se enfrentar o problema dos incêndios em Portugal. “O desafio”, frisa, “é a participação de todos no sistema de gestão de fogos rurais”. E, acrescenta, “os planos podem ser bons, mas precisam de financiamento”.

O exemplo da imagem das duas casas isoladas – projetada na apresentação do relatório "Gestão do Desempenho no Sistema Integrado de Gestão do Fogo Rural em Portugal", esta terça-feira, no Auditório da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em Lisboa – ilustra o problema da fragmentação da propriedade em Portugal, onde 98% do território é privado e muitos terrenos rurais estão ao abandono, sem uma gestão efetiva para frear o perigo que espreita.

Uma das casas na foto é habitada e a outra não. E de pouco serve ao casal que ali vive limpar o mato à volta, quando o vizinho não o faz, numa freguesia onde vivem 680 pessoas, mas há cerca de três mil proprietários, descreve o especialista. E é assim naquele lugar, como em muitos outros do Centro e Norte do país, onde um hectare de terra pode ter seis proprietários que nunca a viram.

Durante um mês, Michael Czaja percorreu Portugal de Norte a Sul, para analisar e perceber as crenças e atitudes de uma variedade de atores no palco da prevenção e combate a incêndios rurais em território português. Tinha por objetivo analisar que novas leis, planos e ações surgiram nos últimos cinco anos – na sequência dos trágicos incêndios de 2017 – e desenhar uma estratégia de comunicação e de envolvimento dos principais “stakeholders” de modo a promover a aplicação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais. Esteve em Portugal como perito independente, a convite da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), ao abrigo do Programa Fulbright.

Das conversas que teve com 35 atores no terreno – entre técnicos da AGIF, do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, dos municípios, de associações de proprietários florestais, da indústria da celulose, da academia e de organizações não governamentais – resultou um conjunto de recomendações que passam por reforçar a importância do “planeamento colaborativo”, “corrigir lições aprendidas”, “promover a articulação entre entidades”, “reavaliar políticas”, “identificar falhas” e “gerir expectativas”. No final conversou com o Expresso.

No final da sua apresentação, citou duas frases de um antigo cientista político e jornalista americano (Bernard B. Fall): “Trabalhámos demasiadas vezes com procedimentos e ideias que funcionam bem, mas de rotina. Já é tempo de tentarmos novas abordagens e – acima de tudo – ideias”. E “se funciona, está obsoleto”. Tendo em conta que o sistema de gestão Integrada de Fogos rurais é novo, é uma mensagem para os que não querem novas abordagens?
O sistema é novo e está a ser posto em prática. Observámos tudo o que foi feito desde 2017 e encontrámos um novo Plano Nacional de Gestão de Incêndios Rurais, o Programa Nacional de Ação e o Decreto-Lei 82-2021. Há projetos-piloto em fase de conclusão, que são uma ferramenta de aprendizagem para identificar sucessos e fraquezas no sistema integrado e reavaliar papéis e responsabilidades das partes interessadas nos níveis regional e níveis sub-regionais. Da minha conversa com vários participantes, verifiquei que está em andamento um processo centrado na necessidade de mudança. Eu sugiro que olhem para este processo e o discutam entre as diferentes agências, e avaliem o que pode ser melhorado.

Falou em peças soltas de um puzzle em movimento, que só ficará completo se houver coordenação/colaboração entre entidades para pôr os planos em prática. Como?
É necessário um planeamento colaborativo e uma perspetiva de governança. Todos podem ver como contribuir, porque se podem complementar, encontrar objetivos comuns e ajudar mutuamente para atingir os objetivos da estratégia. Recomendo que se encoraje a cooperação interinstitucional. É preciso confiar, partilhar dados, conhecimento e experiência e pensar na "vitória" coletiva.

Em vez de uma 'comunidade de iguais', sente que há algum stress entre entidades?
Não me apercebi disso. As pessoas reconhecem que o sistema é novo, que há novas regras legais a seguir. O Governo montou este novo sistema e a AGIF coordena e facilita a ligação entre os vários atores. Também encontrei pessoas que não querem fazer parte da solução.

A foto da paisagem que mostrou com as duas casas isoladas revela a fragilidade da nossa paisagem, com população dispersa no meio rural e falta de gestão das propriedades abandonadas. Há a cultura de que se a propriedade é minha, posso decidir nada fazer. É aqui que temos “o grande desafio”?
É um grande desafio. É impressionante a quantidade de pequenas propriedades em Portugal e a ausência dos proprietários. É um desafio e uma oportunidade ver como se pode ultrapassar isto. É um desafio a participação de todos no sistema de gestão de fogos rurais. As pessoas podem tirar mais benefícios se colaborarem umas com as outras. Percebo que seja um legado cultural, mas penso que há uma solução e a iniciativa do registo cadastral da propriedade é um dos caminhos e incentivos para isso.

O presidente da AGIF tem defendido que “é preciso acelerar a transformação”. A estrutura fundiária não facilita a mudança?
É ainda mais difícil quando alguém herda um sexto de um hectare. É um desafio para a gestão da paisagem trabalhar com tal fragmentação de propriedades.

Entre as suas recomendações fala também em reforçar estratégias de comunicação e no desafio do desenvolvimento socioeconómico rural. O que destaca?
Impressionou-me ver que o Conselho de Ministros aprovou em dois anos o Plano de Ação Nacional, e uma nova governança para os fogos rurais, permitindo fazer avançar o processo. Mas recomendo que falem com os stakeholders, que saibam onde estão, o que está a acontecer, com que cenários se pode trabalhar com os inquilinos públicos, e como se pode financiar tudo isto. Sabemos que as ignições vão continuar a acontecer e não se pode eliminar o risco. Há sempre incerteza com base na meteorologia. E é preciso fazer a gestão das expectativas. As estratégias para envolver as comunidades, com as campanhas “Portugal Chama” e Raposa Chama" parecem-me estar a funcionar bem e é preciso reforçá-las.

Na sessão de perguntas, um dos interlocutores falou na importância da gestão da paisagem e da importância de financiar os serviços prestados pelos ecossistemas, como o facto de as florestas serem sequestradoras de carbono e por isso serem valorizadas. Esta é uma ferramenta que pode ser mais usada do que está a ser?
Os serviços de ecossistemas são uma ferramenta que pode ser valorizada pelos proprietários, quando operacionalizada. Os benefícios são significativos. Se deixarmos os solos preservados, não é preciso gastar tanto em tratamento de águas e poupam-se custos. Nova Iorque beneficia disso através do aqueduto de Catskill, que faz chegar a água à cidade quase sem contaminações, o que permite poupar em tratamento da água. É preciso identificar e facilitar fontes alternativas de financiamento e oportunidades para as partes interessadas.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: ctomas@expresso.impresa.pt

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