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“Abril precisa de cumprir”: os solos já não estão secos, mas tem de chover este mês para as barragens recuperarem da falta de água

“Abril precisa de cumprir”: os solos já não estão secos, mas tem de chover este mês para as barragens recuperarem da falta de água
CARLOS COSTA

Apesar de as chuvas de março terem tirado Portugal da seca extrema, agricultores e especialistas avisam: se não chover em abril e a seca se intensificar, pode mesmo ser necessário fechar a torneira no verão. Restrições nas barragens vão manter-se e não há previsão para serem levantadas, diz ao Expresso a Agência Portuguesa do Ambiente e o Governo. “Situação limite” nesta altura do ano será cada vez mais frequente no futuro

“Abril precisa de cumprir”: os solos já não estão secos, mas tem de chover este mês para as barragens recuperarem da falta de água

Tiago Soares

Jornalista

O solo português já não tem tanta sede. Os últimos dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), referentes a abril, mostram que o índice de água no solo subiu substancialmente nas últimas semanas, sobretudo na região sul: a água que choveu em março — o sexto mês mais chuvoso desde 2000 — praticamente acabou com a seca no solo e nas plantas, dando assim uma ajuda preciosa às atividades agrícolas.

As chuvas acabaram com a seca extrema, que em fevereiro assolava mais de 60% do território nacional. No entanto, 81,7% do país continuava em seca moderada no final de março. E como a água ficou quase toda no solo, os níveis de água nas barragens não recuperaram muito. “No último dia do mês de março, e comparativamente ao último dia do mês anterior, verificou-se um aumento do volume armazenado em seis bacias hidrográficas e uma descida [noutras seis]”, explica o IPMA. Excepto na albufeira da Aguieira (no rio Mondego), os atuais armazenamentos de água nas 60 albufeiras analisadas são inferiores à média do mês de março dos últimos 30 anos.

No início de fevereiro, o Governo ativou medidas de contingência para condicionar a produção de energia em várias albufeiras do território nacional: Cabril, Castelo de Bode, Alto Lindoso, Alto Rabagão, Vilar Tabuaço, e posteriormente Guilhofrei. Antes, as albufeiras de Aguieira e Fronhas, juntamente com a albufeira da Raiva, já tinham sido condicionadas.

“Consequentemente, estas medidas mantêm-se” em vigor, diz a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ao Expresso. Não está previsto um levantamento das restrições nas próximas semanas: “Não sabemos quando isso vai acontecer, depende do quanto chover”, aponta fonte oficial do Ministério do Ambiente.

“Março correu bem, mas continuamos à espera que o mês de abril seja chuvoso para as barragens recuperarem os seus níveis. Se for um mês seco, voltamos ao ponto de partida”, explica Afonso do Ó, especialista em questões de água e seca e consultor da Comissão Europeia.

Ou seja: “Abril precisa de cumprir”, resume Valter Luz, agricultor e detentor de um olival em Alcoutim. Um março chuvoso e um abril seco vai prejudicar a sua produção: a vegetação até pode crescer durante uma semana e meia, mas a pastagem rapidamente se tornará inviável se não continuar a receber chuva. “Se a seca se mantiver como está [moderada], a previsão de quebra da minha produção será de 30%”, garante.

“Não estamos habituados a ter chuvas fora de época, e estas chuvas tardias podem ser más para as produções”, corrobora Firmino Cordeiro, engenheiro agrícola e presidente da Associação Portuguesa de Jovens Agricultores (AJAP). O responsável sublinha o impacto das alterações climáticas na imprevisibilidade da meteorologia, mas também aponta que a falta de água será sempre um problema para os agricultores.

Ora, abril costuma ser um mês muito variável em termos de precipitação — e se a previsão para a Páscoa (sol e calor) se confirmar, a situação pode mesmo agravar-se nos próximos meses, habitualmente de pouca chuva e elevado consumo de água. “Até ao fim do verão pode haver sistemas a entrar em restrição porque os volumes de água não chegam para todos os usos”, diz Afonso do Ó. A água é mais ou menos a mesma e o seu consumo continua a aumentar, sobretudo ao nível dos sistemas de regadios. Resumindo: se não chover em abril e a seca se intensificar, tendo o verão pela frente, é natural que seja mesmo necessário fechar a torneira.

A população estaria preparada? Sim, diz Afonso do Ó. “Quando há seca severa e ameaça não chover na primavera, a população acaba por reagir.” Foi assim durante a seca de 2005: foram lançadas campanhas de sensibilização para o uso responsável da água e houve uma redução efectiva do consumo. “Claro que na rega é mais difícil de controlar, mas em termos de abastecimento urbano as pessoas conseguem passar a usar menos água numa situação apertada”, vaticina o investigador.

Incerteza quanto à água será cada vez maior

Valter Luz está dependente da chuva de dois meses específicos do ano pelo menos desde 2013. Esta dinâmica — ficar à espera que um ou dois meses do ano salvem a situação — deverá ser cada vez mais frequente nos próximos anos. “É muito possível que em 2023 voltemos a depender de março e abril para atenuar a seca. No Algarve isso já acontece há quatro anos: um inverno seco e uma chegada à primavera em situação limite”, aponta Afonso do Ó.

Em 2020, a situação foi ainda mais grave: em março quase não havia água nas reservas, e foi preciso um abril muito chuvoso para recuperar da seca. “Esta variabilidade está comprovada e é natural, mas tem sido cada vez maior. Quanto mais os consumos aumentam, mais o risco de seca aumenta”, sublinha o especialista.

Várias autarquias já começaram a tomar medidas para atenuar o problema. A Câmara Municipal do Sabugal, na Guarda, anunciou em fevereiro que vai reativar captações antigas de água para fornecer as explorações pecuárias afetadas pela seca, e também avançar com uma campanha de sensibilização para os habitantes terem “cuidado com a utilização da água”; em Gouveia, o município disponibilizou 50 mil euros para ajudar os produtores de gado na aquisição de rações para os animais; e em Famalicão, vão ser recuperados dois ecossistemas capazes de reter água e introduzi-la nos lençóis freáticos, possibilitando o seu uso em períodos de seca.

Uma vez chegado o verão, Firmino Cordeiro teme que haja mais agricultores a desistir da profissão — e nesse caso, a solução será o país importar ainda mais aquilo que come. “Há muitos agricultores a pensar como vão pegar nas culturas de primavera e verão — no milho ou tomate, por exemplo — que são muito exigentes em água e por isso em electricidade e combustíveis”, alerta.

Os custos associados já são um factor preocupante. Valter Luz vai ter de aumentar o preço final das suas azeitonas devido aos custos de produção e a medida anunciada pelo Ministério da Agricultura esta semana (abolição do IVA dos fertilizantes) é vista, por Firmino Cordeiro, como insuficiente — até porque este valor já é por norma bastante baixo (6%). “O preço do gasóleo agrícola também vai baixar, mas essa descida deveria ser proporcional à do gasóleo normal”, aponta o agricultor, sublinhando que as alterações climáticas estão a avançar a um “ritmo avassalador”.

Optimizar os sistemas de regadios seria um bom primeiro passo para contrariar esse futuro: “Estamos dependentes da chuva e se há um furo para regar ou não”, queixa-se Valter Luz. Com esse objetivo, o Estado encomendou um plano à Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA), que ficou disponível para consulta pública no final do ano passado. “É um estudo muito parcial. Só é feita uma análise empresarial dos custos. A variabilidade climática e a capacidade dos ecossistemas não são acauteladas”, lamenta Afonso do Ó.

Outra solução passa por melhorar e criar infraestruturas para reter mais água — e isso só será possível apostando em tecnologia e inovação. Em Espanha, os fundos comunitários estão a ser usados para instalar (ainda mais) centrais de dessalinização, capazes de transformar água do mar em água doce. Portugal não optou por essa via e continua a ter apenas uma (em Porto Santo, na Madeira). Por outro lado, o Governo já pediu à APA um projeto para construir uma nova barragem em Viseu, para substituir a albufeira de Fagilde, que ficou vazia em 2017.

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