Política

José Cutileiro por Francisco Seixas da Costa

O embaixador Francisco Seixas da Costa escreve sobre José Cutileiro, que morreu este domingo em Bruxelas. Diz que hesita sempre entre "destacar mais o genial criador dos 'Bilhetes de Colares', essas pequenas crónicas ficcionadas" ou "a figura pública, misto de interventor político e de personalidade académica, que terá ficado na memória da maioria de quantos apenas o conheciam pelo nome"

Francisco Seixas da Costa

Hesito sempre, quando penso em José Cutileiro, se destacar mais o genial criador dos “Bilhetes de Colares”, essas pequenas crónicas ficcionadas, supostamente da autoria de um inglês residente na Várzea, reformado dos serviços secretos e com um “caso” subliminar com um cabo do Exército, que lhe traduzia os textos e aconchegava os lençóis, escritos num português límpido e enriquecido por uma memória culta, atento como poucos às nossas idiossincrasias, ali refletidas de forma por vezes cruel mas, nem por isso, menos verdadeira, típica de quem, estando cá dentro, manteve o seu olhar de fora, se a figura pública, misto de interventor político e de personalidade académica, que terá ficado na memória da maioria de quantos apenas o conheciam pelo nome, em especial pelas suas informadas análises da situação internacional, para onde decantara anos de uma vivência atenta do terreno global, com especial relevo no trabalho mediador desempenhado nos Balcãs, ao lado de lorde Carrington, visão que sempre refletia um realismo cético, marcado por um sentido assumidamente pessimista dos rumos do mundo, quiçá fruto da leitura que a sua passagem pela diplomacia, onde um dia acedeu por escolha política, para uma casa que o aceitou e que indiscutivelmente beneficiou da válida contribuição que ele lhe prestou, e que acabou por lhe induzir uma espécie de sentido do que é possível fazer com as coisas tais como elas estão, a ele que vinha de uma afetividade e de uma nostalgia óbvia pelos tempos em que a relação transatlântica fora o centro incontestado do equilíbrio geopolítico que protegia a nossa segurança e um equilíbrio a que o fim da Guerra Fria começou por introduzir muita esperança, para acabar por se consagrar, como hoje está, num ambiente de desconfiança, criando alguma orfandade não resolvida à Europa, de cujo instrumento político-militar formal, a UEO, ele foi o derradeiro secretário-geral, tarefa da qual saiu, com prestígio, para uma experiência universitária breve, cumulada ao seu sempre inteligente comentário sobre os rumos do mundo, para as nótulas sobre o quotidiano e as suas histórias com os outros que deliciam no seu “Inventário” bloguista, bem como os ricos obituários de figuras, algumas ignotas para quantos não faziam parte do mundo anglo-saxónico que era a sua nunca desmentida “praia”, escritas semanalmente no Expresso, num estilo que se distinguia por não usar pontos finais a sincopar o texto, o que, em jeito de homenagem, arremedo neste que aqui lhe dedico, na hora da sua morte, que hoje foi anunciada, com um beijo de pesar à Myriam.

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