Nos últimos anos, a palavra ideologia passou a ser usada como insulto, o que é bastante inquietante. Discute-se um qualquer tema, como o racismo, os efeitos da descolonização, a prevenção dos comportamentos lesivos dos direitos humanos, e ouve-se como resposta: “isso é ideologia!”.
Por vezes, parece-me que a única resposta possível é afirmar: “é sim, muito obrigado.” Qualquer visão partilhada por um grupo que assuma ideias e crenças que norteiam a forma de olhar para o mundo, de o interpretar e de desenhar objetivos societais a atingir é necessariamente ideológica. E ainda bem que é, porque as ideias podem e devem discutir-se, as crenças podem e devem questionar-se, as interpretações podem e devem ser refutáveis, os objetivos podem e devem ser estabelecidos, ambicionados ou abandonados.
Se não partilharmos ideias, entramos numa deriva individualista em que nada pode ser debatido. E talvez seja por isso que se tentam encerrar discussões sobre os mais variados temas com a lapidar conclusão “isso é ideologia”. Para que os debates construtivos morram.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um manifesto ideológico. Parte de princípios consensualizados, mas que não foram nem são sempre partilhados por todos. O direito à vida é inquestionável para uns, mas não para os defensores da pena de morte. O direito à educação é negado a raparigas em muitos lugares do mundo devido a um olhar (ideológico) distinto do que subjaz a esta declaração. Assim também é nos debates em curso nas sociedades ocidentais. Para muitos de nós, os princípios (ideológicos) de igualdade que devem reger as políticas de imigração sobrepõem-se a outras ideologias que olham de forma diferenciada para os cidadãos, estabelecendo hierarquias de direitos em função da proveniência ou da cor da pele.
Um exemplo claro deste uso da palavra “ideologia” ocorre recorrentemente nos debates sobre igualdade de género. O receio de tratar o tema da igualdade de direitos converteu-se no cunhar de uma expressão nova, “ideologia de género”, para que se construa a ideia de que quem defende políticas de igualdade é condicionado por uma ideologia que quer impor. A falácia principal desta (quasi) argumentação reside na tentativa de criar a ideia de que a recusa de desenvolvimento de políticas de igualdade não é ela também motivada por fatores ideológicos.
Para uns, o casamento e as relações entre pessoas do mesmo sexo são naturais e legítimas, porque reconhecem, em nome da liberdade e da igualdade na expressão do amor e dos afetos, que é necessário retirar do silêncio e da opressão milenar estas pessoas. É uma convicção ideológica, parte da ideia partilhada de que ninguém deve ser discriminado por ser quem é. Para outros, este reconhecimento não é legítimo porque apenas reconhecem um princípio de complementaridade entre homem e mulher que não admite o amor entre pessoas do mesmo sexo (ou, pelo menos, a sua expressão). É também uma convicção ideológica.
Quero com isto dizer que não há ideologia de um lado e ausência de ideologia do outro. Há ideias e crenças partilhadas por diferentes grupos, que se opõem, e por isso vale a pena discuti-las e tomar decisões de forma informada e esclarecida na ponderação individual e coletiva das melhores ideias.
Vem isto a propósito de uma apropriação da palavra “ideologia” pela ministra da Cultura. Referiu, numa intervenção pública, que o setor cultural não podia viver sob uma “ditadura do gosto” e “palas ideológicas”. A “ditadura do gosto” é um termo antigo, usado para referir a menorização de temas ou formas de expressão artística que não reflitam novas tendências ou algum “mainstream” em curso. Quem não os aprecia é considerado menor e, mais grave, os artistas que não sigam essas tendências veem-se excluídos dos circuitos de programação.
Recuamos a debates muito recentes, inclusive na Assembleia da República, sobre Cultura e sabemos que esta ideia de que a cultura está condicionada por “palas ideológicas” é defendida por grupos parlamentares sentados à direita do hemiciclo (incluindo alguns do PSD), comentando repertórios ou linhas de programação que dão visibilidade a temas ou artistas específicos, em que se incluem a igualdade de género, géneros subrepresentados da arte ou temas como o racismo e o multiculturalismo. No fundo, tudo aquilo que hoje gostam de apelidar de “woke”, outra palavra com que se remata tudo o que tenha a ver com o debate sobre direitos humanos (não tenho dúvidas de que hoje as sufragistas que lutaram para garantir o acesso das mulheres ao voto seriam apelidadas de perigosas wokistas…).
Quando olhamos para o contexto geral da programação em instituições culturais nacionais e locais, nas celebrações e festividades que ocorrem pelo país, nos festivais de verão e de inverno, na programação das estações públicas de televisão e rádio, podemos facilmente concluir que não há qualquer evidência (pelo menos quantitativa) de que estejamos perante uma imposição de temas ou artistas que obliterem, por preconceito ideológico, outros que são impedidos de se apresentarem.
Por isso, considero não apenas surpreendente esta declaração da ministra da Cultura, mas sobretudo muito preocupante. Ou não conhece o setor que tutela, o que seria grave, ou pretende criar uma perceção (mais uma…) de que há um problema a resolver na área da programação cultural, o que talvez seja ainda mais grave neste contexto em que as perceções estão a valer mais do que a realidade. Ora, não cabe a um governante substituir-se aos diretores artísticos.
Não só porque estes têm uma formação específica que a generalidade dos ministros da Cultura não tem, mas sobretudo porque é a eles que compete analisar se é ou não relevante trazer aos palcos e às ruas vozes e formas de arte que, ao longo de décadas, foram relegadas para segundo plano, por não serem suficientemente clássicas, suficientemente convencionais, suficientemente compreensíveis ou suficientemente eruditas. Felizmente (e sei que este advérbio encerra uma opção ideológica), o caminho trilhado pelo setor da Cultura tem sido o da diversidade, contrariando exatamente aquilo que a Ministra diz criticar.
Tenho Margarida Balseiro Lopes por uma pessoa com valores certos. Recordo o seu magnífico discurso numa cerimónia do 25 de abril na Assembleia da República. Talvez possa emendar a mão ou mesmo simplesmente não ir por aqui e assumimos todos que foi apenas um mau momento. É que facilmente a argumentação em torno da ditadura do gosto se transforma na imposição de apenas um outro gosto e no cancelamento, esse sim ditatorial, daquilo de que se não gosta.
Parecendo não ter nada a ver, é interessante como Nuno Melo nos quer impor o seu gosto pelo 25 de novembro, como se fosse o mesmo que o 25 de abril. Se não ouvir ninguém, ouça Ramalho Eanes, quando explicou porque é que a equiparação das duas datas não faz sentido.
A única notícia entusiasmante é que, provavelmente, porque descobriu que as datas devem ser equiparadas, para o ano poderemos, pela primeira vez, ver Nuno Melo a descer a Avenida, expressando o seu gosto pelo 25 de abril.
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