Diário da Peste,
21 abril
Imaginar um passaporte para entrar em casa.
Trump anuncia “a suspensão da imigração, uma medida sem precedentes nos Estados Unidos”.
Um café de manhã, Nescafé clássico; depois outro.
“A medida não foi decretada nem durante a Segunda Guerra Mundial.”
Voos cancelados na Europa, as fronteiras de novo e etc.
Parece que os andorinhões podem ficar no ar até 10 meses sem descer à terra.
Sistema prático em 2020.
Com dois cafés, a manhã começa a ter a luz mínima exigida pela cabeça de um sujeito vivo.
Alguém fala de engolir o mundo e depois o cuspir.
Ninguém vindo de fora pode entrar.
Qualquer um é um potencial inimigo.
O bunker é uma arquitectura da política, a partir de Março de 2020.
Aplicar o sistema a cada Estado, depois a cada cidade, depois a cada bairro, depois a cada casa.
A casa: ninguém vindo de fora pode entrar. Proibir a imigração.
No limite, só os que vêm de dentro podem entrar.
Mas quem vem de dentro não pode entrar, isso seria demasiado parvo, já está lá dentro.
Passaporte mostrado de fora, à janela, para se poder abrir a porta.
Figura ambígua de Jastrow: o olhar engana.
Se olhas para a esquerda vês um pato; se olhas para a direita, um coelho.
Não adianta muito.
Festival de cerveja Oktoberfest cancelado.
Papa adia Jornada Mundial da Juventude para 2023.
E o petróleo vendido esta segunda-feira a preços negativos.
Toda a mistura de notícias de alta e baixa importância a grande galope é uma forma de censura pela velocidade.
A velocidade tapa com a vantagem de parecer que mostra.
Não se tapa nem se esconde o importante: é apenas colocar velocidade nas patas ou no motor do importante que ele rapidamente sai de cena.
Quantos mortos hoje e quanto ficou afinal o jogo? 2-0?
Um vídeo de Bob Dylan e Jonny Cash a cantarem Wanted Man, voz grossa e letra atabalhoada.
Take 1.
Projecto de vida: que o último take seja o melhor.
Manu Chao na missa hippie diária com sotaque a cantar “Maneiras”:
Se eu quiser fumar, eu fumo
Se eu quiser beber, eu bebo
Eu pago tudo que eu consumo
Com o suor do meu emprego
Confusão eu não arrumo
Diário de ontem.
O meu tradutor Daniel Hahn lembrou-me uma outra versão.
Perguntaram a Isaac Singer porque continuava a escrever em yiddish se todos os que podiam ler nessa língua tinham sido eliminados nos campos de morte.
E ele terá respondido que quando eles ressuscitarem vão precisar de alguma coisa para ler.
Uma pausa para olhar para o lado e para respirar: 1, 2.
Fazer livros na língua dos que foram exterminados.
Não por simbolismo, mas por acreditar na ressurreição.
Ontem morreu um familiar.
Morte no sono é quase sono mas não é sono.
Acreditar numa língua individual: cada humano tem uma língua que é só dele e não da multidão.
Escrever na língua de cada um dos nossos mortos.
Demasiado inteligente para chorar, disseram uma vez.
Leio Elementos da Psicopatologia.
Estabeleço por minha conta e risco uma estratégia para permanecer sereno no meio do tumulto e em tumulto no meio da pasmaceira.
21 de Abril de 2020, há dias que têm um furo negro.
------------
Índice
Diário da Peste. Nossa Senhora das Janelas
Diário da Peste, O louco religioso fechou a família toda em casa
Diário da Peste. A tinta branca no muro
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt