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Malta Files: o ‘leak’ que mais dinheiro rendeu ao Fisco faz cinco anos

Foto: Getty Images
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A 20 de maio de 2017 a investigação Malta Files revelava detalhes sobre o atrativo regime fiscal maltês. Cinco anos volvidos, o Fisco recuperou quase €20 milhões. E as trocas de informação com Malta dispararam

Malta Files: o ‘leak’ que mais dinheiro rendeu ao Fisco faz cinco anos

Miguel Prado

Editor de Economia

Foi a fuga de informação associada às mais altas recuperações de impostos da Autoridade Tributária em Portugal, batendo o impacto que outros leaks, como Swiss Leaks, Lux Leaks, Panama Papers, Football Leaks e Luanda Leaks, tiveram em termos de arrecadação fiscal. Foi há cinco anos, a 20 de maio de 2017, com a investigação “Malta Files”, que o consórcio EIC – European Investigative Collaborations, de que o Expresso faz parte, começou a publicar um conjunto de artigos sobre o uso de Malta como jurisdição privilegiada para a interposição de empresas de fachada e otimização fiscal.

Publicada a partir de uma extensa análise sobre as empresas no registo comercial de Malta, a investigação destapou a existência, em 2017, de mais de 400 cidadãos com nacionalidade portuguesa acionistas de empresas em Malta, incluindo empresários como José Berardo e Nuno Vasconcellos, Miguel Pais do Amaral, João Gama Leão, Eduardo Rodrigues e Alfredo Casimiro. Alguns deles acumularam avultadas dívidas à banca que mergulharam os seus impérios empresariais em processos de insolvência ou em litígios de centenas de milhões de euros.

Atraídos inicialmente pela taxa efetiva de cerca de 5% proporcionada por Malta, e pela facilidade de abertura de empresas que, na sua maior parte, não tinha operação real naquela jurisdição, muitos empresários portugueses desativaram nos últimos anos as estruturas que Malta Files revelou em 2017.

Mas além de apontar as ligações de proeminentes empresários portugueses a Malta, a investigação então feita pelo Expresso também revelou, por exemplo, a estrutura que 48 sócios portugueses da Deloitte mantinham naquela jurisdição, servindo para absorver prémios oriundos de Angola, e canalizados, através de Malta, para dezenas de empresas em Portugal.

O caso acabou por ser investigado pela Autoridade Tributária (AT) e rendeu ao Fisco importantes dividendos: em 2019 o relatório anual de combate à fraude e evasão fiscal (relativo a 2018) revelava, embora sem nomear a Deloitte, regularizações voluntárias de 31,87 milhões de euros, que permitiram à AT encaixar mais de 8 milhões de euros de impostos adicionais e 900 mil euros de juros compensatórios. O motivo: o Fisco entendia que o dinheiro recebido via Malta era rendimento do trabalho dos sócios da Deloitte, que devia ser tributado em sede de IRS como tal (rendimento do trabalho), em vez de alimentar os resultados das empresas de cada sócio da Deloitte e ser tributado em sede de IRC.

Em novembro do ano passado o presidente da Deloitte Portugal, António Lagartixo, desvalorizava, em entrevista ao Expresso, o episódio, que custou aos sócios da consultora largos milhões de euros em regularizações de impostos. “Esclarecemos tudo a todas as autoridades, a todos os reguladores, é uma coisa que tem cinco, seis anos. Não é um tema”, afirmou. E tentou também sublinhar que o diferendo com o Fisco era um assunto da esfera pessoal de cada sócio.

“Estamos a associar isso à Deloitte, mas trata-se de pessoas individuais, das quais nem posso falar. Acabámos por esclarecer tudo”, afirmou António Lagartixo. Mas a estrutura usada em Malta claramente estava associada à conhecida consultora e auditora: chamava-se Deloitte International e era detida por quatro sociedades maltesas controladas pelas empresas portuguesas de quase meia centena de sócios.

O caso da Deloitte, que o Expresso revelou no âmbito dos Malta Files, rendeu ao Fisco uma soma avultada, muito mais significativa do que todos os impostos recuperados noutras investigações da AT associadas a leaks mediáticos.

No relatório de combate à fraude e evasão fiscal do ano 2019 (publicado em 2020) o Governo indicava, por exemplo, que as inspeções ligadas a casos do Swiss Leaks e dos Panama Papers tinham resultado em termos acumulados, ao longo de vários anos, em menos de 1 milhão de euros de propostas de correções de impostos em cada uma das investigações. No último relatório, publicado em julho de 2021 e relativo ao ano 2020, já não apareciam referência a outras ações especiais associadas a mediáticos leaks, exceto os Malta Files. Mas com uma novidade importante.

Nesse documento o Governo revelava que em 2020 foram concluídas sete investigações administrativas ligadas aos Malta Files, tendo uma delas resultado numa regularização voluntária de 42,2 milhões de euros de rendimentos empresariais, que se traduziram no pagamento adicional de impostos e juros de 10,93 milhões de euros. Até hoje persiste o mistério sobre quem foi o contribuinte que arcou com estes quase 11 milhões de euros adicionais por conta dos seus negócios em Malta.

Certo é que em apenas duas investigações ligadas aos Malta Files o Fisco português conseguiu arrecadar cerca de 20 milhões de euros. Foi mais do que Espanha conseguiu com o mediático processo fiscal de Cristiano Ronaldo (revelado pelo consórcio EIC e pelo Expresso, na investigação “Football Leaks”, com documentos obtidos pela revista alemã “Der Spiegel”), que acordou entregar quase 19 milhões à administração fiscal do país vizinho, devido ao uso, durante anos, de sociedades offshore para o recebimento de direitos de imagem, numa estrutura que visava baixar os impostos a entregar em Espanha, enquanto o jogador tinha contrato com o Real Madrid.

E Football Leaks e Malta Files (bem como Luanda Leaks) tiveram um elo de ligação: Rui Pinto, que está a ser julgado por 90 crimes (na sua maioria de acesso indevido e violação de correspondência, associados ao dossiê Football Leaks e à acusação de tentativa de extorsão ao fundo Doyen), assumiu-se como fonte desses leaks.

Fisco com mais informação

Se no plano dos resultados a AT teve em Malta um “euromilhões” (apenas duas ações inspetivas renderam quase 20 milhões de euros), o pós Malta Files revelou outra realidade relevante: o Fisco português passou a ter mais informação sobre a relação dos contribuintes portugueses com aquela jurisdição.

No capítulo das trocas automáticas de informação, os vários relatórios anuais de combate à fraude e evasão fiscal publicados pelo Governo mostram que tem crescido o volume de informação que Portugal e Malta partilham entre si.

Em 2016, antes dos Malta Files, a AT tinha recebido de Malta apenas 80 informações ao abrigo do mecanismo de troca automática de dados e tinha partilhado 90. Em 2020, o último ano com dados disponíveis, a AT recebeu mais de 2500 registos oriundos de Malta e enviou quase 1800.

O Fisco português não divulgou ainda números relativos a 2021 (tal só deverá acontecer em julho) nem informações que permitam perceber se, do ponto de vista da AT, os Malta Files são um caso encerrado ou se ainda há investigações em curso.

Mas os escândalos e revelações dos últimos anos colocaram a jurisdição maltesa sob maior vigilância internacional, e podem ter levado muitos empresários a optar por outras jurisdições mais discretas para a instalação de empresas de fachada.

Em 2021 a Financial Action Task Force (FATF), um organismo inter-governamental de combate ao branqueamento de capitais, colocou Malta na sua lista cinzenta, uma lista que abrange países que se comprometeram a trabalhar para resolver os problemas que lhes são imputados em matéria de riscos de lavagem de dinheiro, mas que mantêm deficiências estratégicas nesse capítulo.

A FATF notava que em junho de 2021 Malta tinha assumido um “compromisso político de alto nível” para trabalhar com a organização e reforçar a eficácia das suas regras de prevenção do branqueamento de capitais. Mas alertava que as autoridades maltesas tinham de continuar a demonstrar que a informação sobre os beneficiários efetivos das empresas era correta e tinham de trabalhar para sancionar quem preste informação incorreta.

Hoje, volvidos cinco anos, muitas das empresas detidas por portugueses em Malta foram dissolvidas. Outras terão sido criadas. Para o Estado português sobrou um balanço positivo de oito dígitos na recuperação de impostos.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mprado@expresso.impresa.pt

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